Texto por António Barradas

26. Há mais de duas décadas e meia, Richard Linklater mostrava ao mundo o lado real do amor. Sem máscaras, com sujidade, sem primor e com a forma mais crua de se olhar possível, foi assim que nos foi apresentada a trilogia “Before”. Como para “antes” já bastaram os filmes, falemos agora do pós da saga que nos ensinou a sentar sozinhos num comboio, a cumprir com palavras soltas e a entender a velocidade da vida e o seu, nem sempre bom, rasto.

Before Sunrise, 1995

Recém-entrados na idade do egoísmo (os ‘intes’, pois claro) Jesse e Celine encontram-se num comboio movido a vapor e pautado por discussões conjugais, que ambos observavam por entre as letras soltas dos livros que os acompanhavam. A conexão deu-se. A história começou a ser escrita. Inusitada e sem tempo para medir prós e contras, a química fez o seu papel e deitou tudo num copo de pressa, essa eterna inimiga da perfeição. Por entre dilemas banais, questões fulcrais, visões sobre a morte e planos para a vida, o encontro entre dois eternos amantes de Continentes distintos, findou-se numa noite perfeita de paixão em Viena.

Após a exacerbação do carnal, da vontade imediata de se conhecerem e dos planos selados a cuspo numa capital europeia, o realizador decide, 9 anos depois (tal e qual como as filmagens), demonstrar-nos o lado B das promessas levadas pelo vento, na porta de um comboio que partiu cedo de mais. Não houve um “viveram felizes para sempre”. Nunca há e isso fica bem vincado no realismo apaixonado de Linklater. Apareceu a separação, o arrependimento e a curiosidade aguçada por anos a fio vazios de resposta. As vida de ambos estava em andamento, tal e qual o gigante metálico que se deslocou naqueles carris em 1995. Era 2004 e o mundo girou com a força do tempo. Jesse estava casado, com um filho e havia escrito um livro sobre o acontecimento que marcou a sua vida; Celine estava menos crente numa vida às flores e o seu jardim mal era povoado, a não ser pelas inevitabilidades da vida adulta.

Before Sunset, 2004

Encontraram-se, fortuitamente, na apresentação do livro de Jesse, em Paris. Navegaram no Sena, enquanto viam crescer as ondas das perguntas que ficaram por responder após o falhado reencontro em Dezembro de 1995. Havia ressentimento, mas saudades. Existia desconforto, mas curiosidade. Acima de tudo, estava a ligação indelével, criada com a fluidez de um discurso que nos faz viver os seus pensamentos. O final é um voo perdido. Uma música tocada, como moeda de troca pela história gravada nas páginas de um Romance que estava a ser um sucesso. Foi um olhar. O avião ficou em terra mal Celine, com o seu desembaraço adorável, acabou com um “Baby, you are going to miss that plane”. “I Know”, rematou Jesse com a esperança de reviver tudo o que falhou.

Não há amor em todos os silêncios. Existe, sim, nos compassos a desenharem círculos nas lembranças de passado, nos desejos de futuro e em todas as intercepções onde o formigueiro sobe aos lábios e os faz fixarem-se. Em 2013, na Grécia, com duas filhas gémeas, a velhice a bater nos corpos já relaxados, na parca paciência para problemas estruturais e para a cruel inevitabilidade dos problemas mal resolvidos. O último filme da trilogia (até hoje), mostra-nos o lado B do vinil que fomos deixando a tocar enquanto nos recostávamos no sofá composto por rosas. Nem tudo é o mar delas e é preciso a crua visão de uma relação para nos demonstrar isso mesmo.

Before Midnignt, 2014

O arrependimento volta, porém, desta vez da forma mais negativa de todas. A que nos faz interrogar “e se não o tivesse feito”, em detrimento do oposto. A curiosidades desvanece, por entre as peculiaridades que já sabem a pedra no sapato. Os laços são outros, mais permanentes, mas menos fortes. As raízes já se incrustam na terra e as sementes outrora plantadas, crescem agora fora da caixa. Há questões fundas, que tardam a ficar resolvidas e Linklater põe a nu o que todos já pensámos: será a química do amor a solução certa para esta experiência?

Deixa-se a resposta a quem ama. A quem vive a mesma história de Celine e Jesse, mas de outra perspectiva. Passam os anos, mudam-se os tempos, contudo, a força do olhar que os uniu, só será desfeita se o quisermos. Uma celebração aos 26 anos desta ode ao amor cru, sem condimentos e com o sangue à mostra.

Texto de Antonio Barradas para a revista PARQ #39 Março 2021 PARQ_69.pdf (parqmag.com)