Entre robôs e plantas nos sons de Vallechi
Texto: Alex Couto
Fotografia de Maria Rita
O Vallechi é o mais recente DJ no painel de luxo da Discotexas e está a dar passos seguros para nos apresentar trabalhos mais longos. Por agora, já ouvimos a faixa Hold, o primeiro single, que nos impressionou muito e que recomendamos. Tivemos a oportunidade de conversar com Vallechi acerca da sua música — não só das batidas electrónicas, mas também de uma possível componente terapêutica que a música nos permite descobrir.
Para começar, tentámos perceber de onde é que veio esta apreciação pela música:
“O poder da música começou em mim mesmo. Numa fase de depressão, teve um papel muito terapêutico comigo, de healing. Trouxe-me harmonia e uma forma de expressão para me conectar com os meus sentimentos e comigo próprio.”
Também tentámos perceber um bocadinho melhor qual era a relação entre a música e esta ideia de healing que a música parece permitir. Apesar de não considerar a sua música terapêutica em si mesma, Vallechi acredita que a batida certa pode abrir um diálogo:
“Não diria que a minha música tem propriedades healing ou terapêuticas mas tem a intenção de falar destes assuntos densos numa linguagem mais moderna e contemporânea, para que daí os possamos discutir em conjunto.”
Esta aproximação entre música e terapia é sem dúvida uma ambição nobre e uma que tende a ser quase uma exigência nesta era em que a sociedade está finalmente a abrir os olhos para os problemas da saúde mental. Perguntámos ao Vallechi se esta intenção o guiou também enquanto compunha o seu primeiro álbum:
“Durante essa exploração percebi que isto também se podia aplicar a outras pessoas e foi então que virou a base do meu trabalho, em que a música tem uma intenção de conectar as pessoas com elas próprias e de melhorar o mundo em que estamos.”
Esta relação de proximidade entre o mundo em que vivemos e o mundo em que vivemos dentro da nossa cabeça levou-nos à pergunta seguinte, onde tentámos descobrir o porquê do Vallechi celebrar esta música que nos dá ferramentas de auto-análise e de conhecimento, com actuações ao vivo em que mistura electrónica e instrumentos orgânicos, como os batuques.
Quem viu o último concerto de Vallechi consegue sentir essa sinergia que torna o momento palpável.
“Para mim, o que é mais importante é criar uma conexão emocional. Quando se projecta música ao vivo e se mistura com música electrónica cria-se um ambiente novo e que é bastante desafiante, mas onde se cria uma maior conexão emocional entre quem ouve e quem toca. É com base nessa conexão emocional que quero criar os meus sons.”
Esta resposta deixou-nos curiosos acerca de como seria o concerto de sonho do Vallechi, decerto muito diferentes dos sonhos habituais dos cantores e das bandas, tal é a distância das suas intenções enquanto criador.
“Tocar para muitas pessoas, numa localização icónica onde se pudesse misturar tecnologia e natureza, criando um espaço onde as pessoas vão para se conectarem com elas próprias. Não tenho localização em mente, mas sim esta ideia ou sensação de poder criar um evento de conexão memorável para todas as pessoas.”
Nós gostamos muito disto, não é por acaso que o solarpunk nos parece bem mais optimista que o cyberpunk em si mesmo. A ideia de cidade moderna tende a ser pouco orgânica, mas também acreditamos que o caminho para a regeneração do mundo será feito com recurso à relação entre o humano, a natureza e a tecnologia à sua disposição.
Como sabemos que o Vallechi viveu em Londres durante vários anos, achámos interessante perceber se a cidade também teve o seu impacto na sua relação com a tecnologia:
“Londres foi uma grande influência para o meu trabalho, sem dúvida, numa perspectiva muito mais global da vida e proporção, porque quando estamos em Portugal estamos numa realidade muito mais pequena e familiar. Quando vamos para outro país estamos numa perspectiva maior e isso sem dúvida teve grande influência. Acho que a minha relação com a tecnologia também foi desenvolvida lá, o que faz todo o sentido com o trabalho que faço.”
Ou seja, face à proximidade com a tecnologia que Londres permitiu a Vallechi, este decidiu focar-se na humanidade e na natureza. Talvez esta seja a resposta mais humana possível, evitando o cinzento monolítico e dando lugar ao verde e a cada um dos nossos tons de pele.
“O meu ângulo de desenvolvimento humano é muito combinar conhecimento antigo, ciência e crença, com tecnologia. A ideia é caminhar no sentido de que a humanidade está a evoluir e criar os novos recursos para isso.”
E como é que a internet pode ajudar nesta tarefa? Com a certeza de nós não vamos simplesmente desligar num futuro próximo. A ideia de Vallechi é uma de aproximação entre duas realidades que em vez de serem adversas, podem ser simbióticas.
“Quase todos os movimentos de desenvolvimento pessoal e healing têm estado organizados para sair da internet e procurar algo mais orgânico, mas eu acho que nós temos de oferecer soluções para o caminho que o mundo está a evoluir e não só resistir à evolução. Penso que a tecnologia tem benefícios se for usada nesse sentido — ao ser uma ferramenta, pode ser usada para construção ou desconstrução.”
Ouvimos Vallechi mais um pouco sobre este tema, onde a sua sensibilidade parece tocar no mesmo tipo de tónica que a sua música consegue captar:
“A nível de sociedade nós temos tido uma grande evolução. Por exemplo, nos anos setenta e oitenta havia uma grande consciencialização e as pessoas juntavam-se muito para fazer destacar conceitos maiores que elas, como se fossem criar comunidades para liberdade a vários níveis. E o que tem acontecido é que o oposto tem vingado, o individualismo e a identidade própria. Tanto um como o outro têm coisas boas e coisas más, o que eu acho é que para evoluir no mundo, primeiro temos de evoluir em nós, para depois conseguirmos evoluir em comunidade.”
Depois de mergulharmos nas suas ideias, tivemos também oportunidade de falar sobre a imagem do projecto, que nos pareceu rica e com um desenvolvimento cuidado.
“Para mim a componente visual é tão rica como a parte musical porque também está relacionada com a partilha de uma mensagem. Há pessoas que se relacionam mais com a parte auditiva e outras com a parte visual. O meu background em branding também me faz ter essa componente muito presente.”
Antes de fecharmos, perguntei ao Vallechi como foi ter assinado pela Discotexas, uma editora de prestígio na música electrónica e onde muitos compositores, produtores e artistas gostariam de estar. Pelos vistos, a componente de branding da resposta anterior, já o tinha aproximado da editora ainda antes de saber que iria assinar com eles:
“São artistas de música que já conheço há muitos anos e que são meus amigos, temos um estúdio lado a lado aqui em Marvila. Já tinha vindo a trabalhar a nova direcção para Discotexas, assim como o desenvolvimento do projecto do Moullinex.”
Ri-se, e nós também nos rimos, quando nos diz que foi tudo muito friends & family, numa clara alusão à linguagem das marcas que conhece tão bem.
“Quando finalizei as minhas músicas, mostrei-lhes e eles convidaram-me a lançar na label deles. Não foi bem premeditado, mas o nosso envolvimento materializou-se porque eles acharam que fazia sentido no gosto deles.”
O Vallechi mostra-nos que as nossas intenções artísticas podem ultrapassar o ego e dirigirem-se ao bem-estar de quem está à nossa volta. Gostámos de o conhecer e ficamos a aguardar o disco como quem espera uma sessão de terapia — curiosos com a próxima descoberta.
texto de Alex Couto para PARQ_78.pdf (parqmag.com)