Temos Apenas o Presente

Entrevista Francisco Vaz Fernandes

Fotografias Leonor Fonseca @leonorfonseca

Num sábado, à tarde, a PARQ deslocou-se ao estúdio do c.e.m.-centro em movimento – localizado na Baixa –, para conversar com Manuela Marques (artista e professora) que, atualmente, se encontra mergulhada no processo de ensaios do espetáculo “Temos Apenas o Presente” – que integra a programação do Festival Temps d’Images, com estreia marcada para 13 de Outubro, no Pequeno Auditório do CCB.

PARQ: Comecemos pela parte que mais me intriga na tua nova peça, o título “Temos Apenas o Presente” é um statement? Uma descrença no futuro?

Manuela Marques: É uma evidência. Entendo, de facto, que temos apenas o presente para viver, porque agimos sempre no “agora”. Existimos, ativamente, no tempo Presente, mesmo com a esperança de um Futuro, ou seja, de um novo Presente. O Tempo é uma grandeza de medida abstrata, um conceito que auxilia o Ser Humano a organizar, a compreender e a percecionar a sua estadia terrena. No fundo, e como teorizou Santo Agostinho, o Tempo é sempre Presente, sendo o seu passado, a memória, e o seu futuro, a expectativa. Esta peça reporta e vinca essa ideia de permanente Presente, dado que há ausência, quase total, de referências espácio-temporais e os intérpretes revelam-se, em tempo real, à medida que a ação se desenrola.

O facto de teres elaborado todo este projeto durante um período pandémico, em que tu própria estarias isolada e com o sentimento de um futuro adiado, em que medida isso marcou a tua visão do mundo nesta peça?

Marcou e determinou, de forma inevitável. Creio que ninguém ficou indiferente a este evento pandémico carregado de incertezas, de insegurança e de contingências. O projeto surge durante esse período, e por volta da segunda fase de confinamento emergem as primeiras reflexões e inquietações sobre uma Humanidade restringida de ser Social, em presença física. Quais as repercussões no comportamento e no psicológico do Ser Humano condicionado no espaço e, aparentemente, cristalizado no Presente? – esta é a interrogação que tento responder, desde então, e que ocasionou uma fase de pesquisa sobre assuntos ligados à noção de Saúde Mental. Eu própria já me encontrava isolada, desempregada, realmente sem pistas de como seria o meu Futuro, e num processo cíclico de Depressão e Ansiedade. Contudo, ficar em casa ofereceu-me um lugar de suspensão temporal – abrandamento –, para observar o “mundo”, as pessoas, e voltar a estudar, enquanto me reconhecia. Amiúde, sucedeu-se a elaboração deste projeto com vista à sua materialização – o espetáculo – mas sem quaisquer coordenadas temporais.

Li que recorreste a obras de Bernardo Santareno, Orwell e Polanski, em que medida foram inspiradoras no processo de escrita da peça? Que outras referências te influenciaram ou influenciam e estão presentes no projeto

Confirmo. Para escrever a peça baseei-me, especificamente, nos universos das obras “Restos” de Santareno, “1984” de Orwell e “La Vénus à la Fourrure” do Polanski, uma vez que contêm em si uma sensação de constrangimento, cuja narração reside no limbo ficcional adjacente à realidade. O visionário “1984” pela descrição duma sociedade à mercê do ecrã e refém da história que uma entidade superior, diariamente, reescreve. Na peça de Santareno e como no filme de Polanksy, ambos os enredos decorrem, em tempo real, circunscritos num único espaço – quarto e sala de teatro, respetivamente – e protagonizados por duas personagens. Pensei e indaguei a maneira de como poderia juntar, na mesma obra, alguns dos ingredientes que me suscitavam interesse. Em simultâneo, debrucei-me sobre ensaios de autores como Debord, Lipovetsky, Kant, Esquirol, Damásio ou Ledoux, entre outros. Claramente, “A Resistência Íntima” de Josep Maria Esquirol, “A Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord e “O Cérebro Consciente” de Joseph Ledoux, foram leituras capitais que adensaram tanto a escrita da peça como a fundamentação teórica do próprio projeto, além de terem reequacionado a minha perceção sobre a condição Humana.

Depreendi que é uma peça sobre o “agora”, sobre o real. O teatro é tudo isso também?

Diria que é sintomática das maravilhas do “agora”, reflete a dinâmica de uma Sociedade contemporânea individualista que, para existir, está cada vez mais digitalizada e rendida às plataformas virtuais do Deus-ecrã – fenómeno que ocasiona, de certa maneira, um vouyerismo consentido, dado o abuso (mau uso) das ferramentas digitais. Sendo a Arte o oráculo de uma Sociedade, e que por princípio é disruptiva, deve, por direito, abordar-pensar a ação da Humanidade. Por compreender o Teatro como um simulacro da realidade, “Temos Apenas o Presente” edifica-se a partir de questões atuais – como as da Saúde Mental, a incompreensão das mesmas dada a sua condição invisível –, mas também toca em assuntos intemporais – como a definição de “amor” ou de “identidade”. Em termos formais, a peça simula a eminência de um “não futuro”, perspetivando-se num não lugar, tanto espacial como temporal.

Pensas que será uma peça muito geracional, deste tempo, ou preferes pensar que trás questões universais?

Arrisco-me a declarar que esta peça é intemporal, universal e transversal, porque é sobre o comum ao Ser Humano, pelo menos esse foi e é o meu desejo. O texto “Temos Apenas o Presente” é, deveras, intemporal, adaptável a qualquer geografia e arquitetura, e ao carregar questões humanas e universais pode ser protagonizado por uma diversidade de duplas de intérpretes. O desafio deste projeto foi escrever um texto que pudesse ser tangente a todas as Pessoas. É um espetáculo singelo sobre a fragilidade e a vulnerabilidade humana, como tal, na fase de escrita, fui afinando, minuciosamente, as palavras e as ideias para conseguir ter uma narrativa crua e flexível, esvaziada de acessórios e de distrações.

A tua prática nas artes plásticas condicionou ou contaminou a forma de compor o texto e de dirigir, artisticamente, o espetáculo?

A expressão plástica foi o meu primeiro contacto com a Arte. A minha formação encaminhou-se nesse sentido e, bom, ganhei a prática nas artes plásticas por consequência de querer ser professora de EVT (Educação Visual e Tecnológica) – o meu derradeiro sonho de criança. Na minha opinião, tudo está interligado, portanto, toda a diversidade de experiências que vou usufruindo, ao longo do meu percurso (pessoal e profissional), compõem-me como Pessoa Singular, logo transparecem naquilo que faço, como seja dar aulas ou produzir-criar um objeto artístico. Por exemplo, a dramaturgia e o mise-en-scène deste espetáculo desenvolve-se por leis da Geometria – as personagens figuram os eixos X, Y e Z –, ou os momentos coreográficos da peça que originam composições visuais – desenhos de movimento. Interessa-me, sempre, fazer um exercício de Forma e de Beleza, compor uma serie de imagens que encadeadas comuniquem uma história, aberta, e independente do formato em que esta se apresenta.

A ideia da encenação já estava em mente aquando o desenvolvimento o texto? Tens aqui a tentação da realização de uma obra total?

Não tinha qualquer esboço ou imagem, do que poderia ser a encenação do espetáculo que, hoje, estou a ensaiar. Aceitei ocupar-me, inteiramente, de cada fase do projeto. Na sequência do vislumbre e desassossego do mesmo, deu-se a etapa de pesquisa para aglomerar apontamentos e referências que o sustentassem e esclarecessem. Redigir o Texto, numa semana, foi o primeiro gesto da sua corporização. Receio ser pretensioso querer realizar uma “obra total”, ao nível do Absoluto, nem sei bem o que tal significa. Sei, sim, que tenho em mãos a concretização de um espetáculo complexo e ambicioso, que implica uma parafernália de equipamento, dado o cruzamento disciplinar, entre Teatro e Cinema, passando pela direção e articulação de toda a equipa e das várias componentes artísticas que o integram: a cenografia do Diogo Dias João, a realização da Rita Nunes, a sonoplastia do João Hasselberg, os grafismos do Tomás Gouveia ou a luz do Manuel Abrantes. Sem o contributo deles, e incluído o suporte à produção da Lysandra Domingues, “Temos Apenas o Presente” seria só um texto impresso.

Falar em teatro experimental faz sentido para ti? É importante para a renovação do teatro?

Teoricamente, referir teatro experimental enquanto corrente artística de determinada época, inscrita na História do Teatro que documenta o seu desenvolvimento, é factual mas não me faz sentido. Advogo que qualquer linguagem-manifestação artística, que se prese, pressupõe-se, sempre, experimental e viva. A prática artística, seja no Teatro, na Dança, na Música, na Escultura ou em que área for, deve ser continuamente experimental, mesmo esta obedecendo a lógicas de metodologia projetual ou respeitando uma agenda política. É importante a experimentação, com ou sem necessidade de inovar ou de solucionar. Experimentar é sinónimo de viver, percebendo que, na prática, nada se repete. Em suma, somos parte de um sistema em constante transformação e renovação.

Convidaste dois atores com quem nunca tinhas trabalhado, a Ana Marta Ferreira e o Filipe Matos. O que eles acrescentam à tua visão do espetáculo?

Acompanho a carreira da Ana Marta e do Filipe, já os conhecia mas nunca tinha trabalhado com nenhum deles nestes moldes artísticos, tínhamo-nos apenas cruzado nas lides do mainstream. Há quem os ache, decerto, uma escolha improvável, convidei-os porque acredito no seu potencial e por gostar de promover o inusitado, o encontro entre profissionais que dificilmente colaborariam. Estou francamente feliz por ser esta a dupla. A Ana Marta Ferreira e o Filipe Matos têm o que é essencial para se ser Intérprete (ator/atriz): generosidade, disponibilidade, responsabilidade e comprometimento. Estreiam-se neste formato de apresentação e de criação, e com tudo o que isso acarreta, ambos tem-se entregado, sem defesas, ao projeto. Costumo dizer que eles são o coração do espetáculo, marcam a pulsação. Se estamos a trabalhar juntos como é óbvio o “olhar” deles inscreve-se no espetáculo e adiciona outras camadas, dão corpo, voz e sentido às palavras que, em 2021, escrevi.

Trabalhar com os atores leva-te a rescrever o texto? É um processo evolutivo? Trazes a experiência deles, também, para dentro, ou pelo contrário afastas-te da autora do texto e concentras-te na encenação, na interpretação.

Deixar de estar sozinha no processo de criação deste espetáculo trouxe-me amparo e vitalidade. É renovador poder trabalhar em equipa, porque amplia as hipóteses do projeto, levanta questões e oferece-lhe novas interpretações que possibilitam a maturação do mesmo. Inicialmente, foi a realizadora Rita Nunes que teve um papel decisivo na revisão do texto para o tornar mais coloquial. Depois, e durante o processo de encenação, juntou-se o parecer dos atores, que ao interpretarem o texto me fez distanciar dele, e assim interrogá-lo e aprimorá-lo para o que é fundamental. No período de ensaios, organicamente, tudo se desenrola e se interliga, a afinação do texto, o desenho da movimentação cénica, a preparação e a direção de interpretação… Enfim, não há existência sem relação.