Texto de Carla Carbone

Encontra-se patente até 23 de Maio, no Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa, a exposição “Pe d’ Orelha, Conversas entre Bordalo e Querubim”.

A exposição, comissariada por Rita Gomes Ferrão e Pedro Bebiano Braga, propõe, por meio das peças apresentadas, uma conversa fictícia entre Rafael Bordalo Pinheiro e Querubim Lapa. Um diálogo criativo imaginário entre estes dois artistas, poderá provocar, inicialmente, no visitante, uma certa estranheza, sobretudo para quem estiver habituado a separar ideologicamente, e politicamente, o século XIX do século XX.

Detalhe montagem da exposição com peças e Bordalo e Querubim Lapa em diálogo

Porém uma oposição entre Bordalo Pinheiro e Querubim Lapa poderá, afinal, não ser assim tão acentuada, tendo em conta que, e segundo alguns historiadores como Paulo Pereira, o século XIX revelou-se um “século longo”, ocupando, por isso, ideologicamente, boa parte do século XX. A ruralidade do país, marcada por uma inclusão industrial pouco relevante, e o acentuado “conservadorismo e tradicionalismo” artístico oitocentista, poderão ter criado esse fio ténue, e invisível, de conectividade entre Bordalo e Querubim lapa. Para o historiador Paulo Pereira “o gosto oitocentista, ao nível da educação das artes e do consumo, mantêm-se até cerca de 1960… O século XIX é, de facto, o século mais longo da nossa história”. Querubim Lapa, por exemplo, registou alguma atividade nas décadas de 50 e 60, com a execução de azulejos nas galerias do centro comercial do Restelo (1954), relevos para o pavilhão de Portugal na feira internacional Comptoir Suisse, em Lausana (1957), peças de cerâmica policromada no Hotel Ritz (1959), painéis para a Reitoria da Universidade de Lisboa, em 1961, entre muitos outros.

duas peças do bordalo entre uma de Querubim Lapa

A similitude entre Bordalo e Querubim apresenta-se visível em muitas das suas obras. Tornando, por isso, esse diálogo imaginário, entre os dois, possível e célere. Segundo Rita Gomes Ferrão, as similaridades entre os dois artistas revelam-se em diferentes dimensões, seja na formação inicial, seja na participação em movimentos artísticos, seja em processos de trabalho. Ambos os artistas “abraçaram a cerâmica”. No entanto, a sua atividade artística já manifestava uma experiência multidisciplinar anterior. A sua incursão na cerâmica vinha por via “erudita”, e não por meio da tradicional “prática oficinal”. Bordalo teria ingressado na Academia de Belas Artes de Lisboa, em 1861, enquanto Querubim teria completado os estudos em escultura na Escola de Belas Artes de Lisboa, no ano de 1953.

Outra das conexões que pode estabelecer-se entre os dois artistas é a relação estreita que mantiveram com a cena artística portuguesa do seu tempo. Bordalo Pinheiro participara nas manifestações artísticas do Grupo Leão, enquanto Querubim ingressara no grupo neo-realista português. Os mesmos artistas tiveram também preocupações educativas, promovendo, por isso, a democratização da arte. Bordalo formará a Escola Industrial das Caldas da Rainha, mais tarde conhecida como Escola Bordalo Pinheiro, e Querubim exercerá a profissão de docente na Escola António Arroio. Profissão que desenvolve durante 40 anos.

peças de Querubim Lapa

Ambos reforçarão a importância da disciplina artística da cerâmica. Os motivos vegetalistas e animalistas aplicados na cerâmica, surgem no trabalho de ambos os artistas. como refere Ferrão, entre eles: “pássaros, insectos, répteis, peixes, frutos, legumes, peças de caça”. A influência orientalizante também é observada nos dois ceramistas. Para Ferrão, é “como se ambos os artistas partilhassem as mesmas mecânicas de pensamento”.

Outro dos paralelismos que podem ser estabelecidos, relativos à prática dos dois artistas, é aplicação dos elementos cerâmicos em arquitectura. Bordalo Pinheiro integra “relevos cerâmicos naturalistas” na residência Beau-Sejour em Benfica (1892), e Querubim, setenta anos mais tarde, reveste de coloridos cerâmicos, a fachada da Casa da Sorte, na Rua Garret. Outra das preocupações manifestadas pelos dois artistas é o modo como esses revestimentos vão causar impacto nos elementos arquitectónicos circundantes. Como bem recorda Ferrão, a respeito da tabacaria Mónaco, Bordalo preocupou-se em aplicar uma pintura em cor “azul cobalto sobre esmalte branco, optando por não criar um conflito visual com a azulejaria predominante na baixa pombalina”. A curadora enfatiza, igualmente, em Querubim, esta preocupação. Na Casa da Sorte, Querubim utiliza “gradações de azul sob vidrados brancos de modo a promover a integração no espaço urbano envolvente”.

azulejos que Querubim Lapa criou para cozinha da sua casa, seguindo a tradição oitocentista

Ainda no âmbito da arquitectura, Querubim Lapa trabalhou com grandes nomes da arquitectura portuguesa, entre eles Francisco Conceição e Silva (1922-1982), que, como sabemos, aplicou, em muitas das suas obras, um sentido modular, de arte total. Decerto Conceição e Silva enfatizou princípios, na sua prática, de que a azulejaria não se limita apenas a ser um elemento decorativo, mas antes uma peça atuante, na obra arquitectónica, de modo integrado, e global. Um dos exemplos mais significativos deste princípio estende-se ao pórtico da entrada da loja Rampa, realizado em 1956, e que, segundo o jornal Observador, se tratava de uma loja das mais famosas na segunda metade do século XX. O mesmo jornal também referiu, em consulta ao historiador José Meco, que era uma obra arquitectónica de grande significado para a modernidade em Portugal. Os dois, arquitecto e artista, viriam a estabelecer uma estreita colaboração, em 1963, aquando da construção do hotel do mar, em Sesimbra.

Outras ligações entre os dois ceramistas, podem estabelecer-se, não esquecendo o humor e as fábulas , presente em alguns dos trabalhos, como o estudo para painel de azulejos na tabacaria Mónaco, de Bordalo Pinheiro, atribuído a 1893, ou a cozinha da Avenida Visconde de Valmor, em Lisboa, de Querubim Lapa. As figuras evocativas de Arcimboldo, nas travessas de Querubim Lapa, na mesma cozinha, com produção na Oficina do Castelo, em 2003.

peça cerâmica de Querubim Lapa

Também Bordalo, no estudo a carvão para “A Chapelada”, publicado n’A Paródia, a 5 de Dezembro de 1900, ostenta figuras arcimboldianas, repletas de frutos, assim como na publicação “O António Maria”, de 16 de Julho de 1891, uma caricatura “O proteccionismo de França”, apresenta um indivíduo coberto por parras de uva, em toda a cabeça e rosto.

Museu Bordalo Pinheiro, Campo Grande 382, Lisboa

texto de Carla Carbone