Estado idílico

texto de Francisco Vaz Fernandes

Toda a fotografia, na relação que estabelece com o espetador, desperta um lado voyeurista. A fotografia, nesse caso, é uma janela e o voyeur é sempre aquele que sendo exterior, espreita. Esse elemento que nem sempre é tão consciente na experiencia do meio fotográfico e que socialmente é censurada, aparece explorado sem pudor nas fotografias de Mona Kuhn, artista brasileira que tem tido um grande reconhecimento internacional. A sua fotografia aproxima-se de uma temática clássica a que podemos chamar o nu artístico. Ao contrário dos exercícios que encontramos dentro deste género, cujo o foco, em geral, é produzir um certo grau de erotismo, as fotografias de Mona Kuhn destacam-se por uma natural candura assexuada.

É precisamente essa naturalidade com que revela os corpos, que nos transmite um certo grau de indiscrição. A sua forma de captar faz com que os indivíduos fotografados estejam sempre do outro lado e, muitas vezes, essa fronteira é dada por uma janela. Ou seja, a sua fotografia amplia esse sentimento de um espetador exterior, um espetador que espreita um corpo nu que prende o seu olhar. Pode até levar o espetador ao ponto de questionar a culpa desse olhar.

A partir da sua série Evidence, 2005, quando a sua fotografia começa a ganhar maior maturidade, grupos de pessoas nuas aparecem com mais frequência nas suas imagens. São fotografias encenadas em que os vários indivíduos adultos presentes na imagem, parecem simular laços de familiaridade, ou, pelo menos, um certo sentimento de comunidade. Contudo, Kuhn fixa barreiras que faz com que os objetos fotografados, os corpos nus, não apareçam na sua maior clareza. Esses corpos são intercetados por vidros de janelas, que tanto deixam ver como disfarçam, criando, zonas mais opacas, no conjunto do campo visual. Também a partir das lentes fotográficas, manipula pontos de focagem e traz elementos que ganham maior clareza em relação a outros. Podemos encontrar em primeiro plano ou com maior nitidez pontos que o espetador não iria estabelecer como prioritários, numa primeira impressão. Por vezes, é um ramo de flores que aparece em primeiro plano e que deixa em desfoco um cena familiar e todos os elementos nus aparecem desfocados. São situações que não acontecem por um sentimento púdico mas para reforçar a ideia de planos e teatralizar o conjunto, como mais tarde abordo.

Nas imagens de Kuhn há um certo idealismo de uma sociedade mais próxima da natureza. As suas encenações fotográficas na verdade não são muito diferentes daquilo com que nos deparamos nos parques naturistas durante a estação estival. Grupos de pessoas nuas em momentos de lazer. Contudo, não encontramos aqui um retrato realista, nem a exploração de aspetos caricatos, o que afasta a sua fotografia de uma perspetiva documental. A falta de realismo das suas imagens afasta qualquer ideia de reportagem fotográfica. As imagens obedecem a uma encenação que se constrói segundo um plano ideal, a perspetiva que o fotógrafo quer construir.

A esse propósito é interessante comparar a sua obra fotográfica com a de Sally Mann que ficou igualmente conhecida por apresentar grupos de indivíduos nus em cenários idílicos. Para a fotógrafa Norte-Americana, a sua família, a sua casa nos confins do Texas e o seu quotidiano, tornaram-se o seu principal objeto fotográfico. Sally Mann ao documentar o seu ambiente familiar, indivíduos nus, adultos e crianças mergulhados numa natureza profunda, parece reconstruir a ideia de uma sociedade que regressa a um estado idílico, algo primordial. Há nas suas imagens uma aproximação a um ideal de pureza que é alicerçado no imaginário popular da chegada dos pioneiros americanos, um dos mitos fundadores dos EUA. De certa forma não é muito diferente da visão ideal de um homem branco, que está na base do apoio a Donald Trump.

Nesse sentido, as imagens de Sally Mann remetem-nos para o ilusionismo que a fotografia consegue criar. Já as imagens de Kuhn, estão no hemisfério oposto. A fotógrafa de São Paulo revela o lado de artifício que cada uma das suas imagens contém. O que se vê, o que se pode mostrar, o que se subentende, tudo é premeditado num exercício de composição. Há algo de teatral na construção das suas imagens. Por tudo isso Kuhn ao contrário de Mann reitera que todo o naturalismo é uma reconstrução e nega esse lado ilusionista que a fotografia, eventualmente, pode criar.

Texto de Francisco Vaz Fernandes para PARQ PARQ_72.pdf (parqmag.com)