Descomplicar a moda
Lilian Pacce foi considerada uma das quinhentas pessoas mais influentes da moda no mundo, revolucionou o jornalismo de moda. Já foi editora de moda, escritora, professora, apresentadora do programa de moda GNT Fashion durante dezoito anos, participou no comité de experts do prémio internacional LVMH. Lilian Pacce é uma jornalista querida e conhecida pelos principais designers de moda e a forma como comunica com o público é única. A sua dedicação, curiosidade e conhecimento são muito mais do que uma imagem de marca, é uma forma de estar e comunicar sobre moda e comportamento.
Patrícia César Vicente: Com que idade surgiu a paixão e a visão tão apurada sobre a moda? Acredita que seja um dom com que se nasce ou é algo que se aprende?
Lilian Pacce: Não sei se tem um marco definido, mas a vida foi me dando vários sinais. Na adolescência, tinha um estilo muito próprio, gostava de me expressar através da moda e sempre soube que a roupa “fala”. E, como boa adolescente, meus códigos eram de rebeldia. O talento, o que a gente chama de “olho” é importante, é a mola propulsora. Mas é preciso lapidar esse olhar, estudar, se informar, se dedicar – there is no free lunch!
PCV: Na fase da adolescência quem eram as suas referências e ícones de estilo?
LP: Meu armário só tinha jeans e camiseta, o que deixava minha mãe bem chateada… Até em festas eu queria ir de jeans, numa época em que os jeans ainda não tinham conquistado o status de luxo. Eu ia de Supertramp e Pink Floyd a Maria Bethania e João Gilberto. Sou uma pessoa de fases, mas nunca fui uma pessoa de ter ídolos – admiro muitas pessoas, mas nunca enlouqueci por causa de alguém que admirava.
PCV: Em 1987 começou a fazer a cobertura dos desfiles de Paris, Milão, Londres e Nova Iorque para o Folha de S. Paulo, nessa altura, acreditamos que tenha sido uma boa oportunidade e o início de algo grandioso. Mas fazer a cobertura dos maiores desfiles do mundo implica um enorme trabalho e resiliência, pode nem ter metade do glamour que as pessoas pensam, mas são experiências e conhecimento para a vida. Das suas experiências dessa época, qual a melhor parte e a parte menos boa?
LP: A melhor parte é poder estar ao vivo no epicentro criativo da moda do mundo. É um privilégio. As capitais da moda, durante as temporadas, ficam efervescentes – tanto nas passarelas quanto nas ruas. É muita informação! A parte menos boa é que o Brasil não faz parte do chamado circuito Elizabeth Arden (Paris-Milão-Londres-Nova York), e tive que trabalhar muito para conquistar o acesso e o respeito dos gringos.
PCV: Após trabalhar há alguns anos em moda, mudou-se para Londres e estudou no London College of Fashion e no Saint Martins School of Fashion , onde estudaram enormes talentos como Alexander McQueen, Galliano e Stella McCartney. Esta mudança de país foi determinante para a sua carreira, seja pelo curso, pela consolidação de conhecimento ou pelas pessoas que conheceu?
LP: Quando fui morar para Londres, eu já era editora de moda mas com formação auto-didata. No Brasil, as faculdades de moda estavam começando. Achei importante entender o processo criativo e resolvi estudar. Fiz desenho, modelagem, criação de coleção… e tive a certeza de não ter a menor vocação para estilista e que minha paixão era mesmo o jornalismo. Mas de lá para cá surgiram os diretores criativos, que não necessariamente conhecem modelagem ou desenho.
PCV: Durante 18 anos teve um programa, GNT Fashion no canal GNT, que revolucionou a forma como as pessoas viam a moda no Brasil. Foi o primeiro programa a transmitir em directo grandes eventos de moda e durante esses dezoito anos, deu a conhecer um lado da moda que até então, as pessoas não tinham visto. Aproximou as pessoas da moda, mudou mentalidades e expandiu o conhecimento das pessoas. Isso tem um enorme poder, responsabilidade e causa impacto numa sociedade. Era e é esse o seu principal objectivo? Sente que esse é o seu maior contributo?
LP: Sem dúvida! Como jornalista com formação em jornal diário, senti que precisava aproximar a moda e a pessoa que estava em casa assistindo a TV – já que, se ela não se identificasse com aquilo, ela mudaria de canal. Você pode admirar um Van Gogh mesmo que não tenha condições de ter uma obra dele em sua casa. Com esse raciocínio, procurei mostrar o valor das criações de moda, o savoir faire, a força comportamental, a moda como radar de comportamento – e a inteligência dos principais players do mercado. E como tudo isso se relacionava com a vida de quem estava assistindo, já que a moda reflete o zeitgeist.
PCV: Há muitos anos que é uma pessoa preocupada com questões sociais, ambientais e relacionadas com a sustentabilidade. Desenvolveu vários projectos pioneiros e acções de sensibilização, conseguiu usar a sua visibilidade para transmitir várias mensagens e ideias que foram sendo respeitadas. Há muitos anos atrás, mal se ouviam falar nestas questões ou preocupações.
LP: Tudo tem um preço. Desde que assisti ao documentário do Al Gore, Uma Verdade Inconveniente, minha cabeça mudou. Vi que sustentabilidade não seria apenas uma tendência e sim uma obrigatoriedade. Abracei a causa, lancei o site com a secção Recicle-se em 2008 e muita gente achou que não ia dar certo falar de moda e beleza do ponto de vista da sustentabilidade social e ambiental. Hoje, é pauta obrigatória. Lancei a campanha pelas sacolas duráveis ou ecobags contra o uso da sacola de plástico descartável (fizemos uma exposição para conscientização e lancei o livro Ecobags – Moda e Meio Ambiente), me engajei contra o uso de canudinhos descartáveis, lancei o desafio #1LookPorUmaSemana. Nele, a ideia é você usar a mesma peça (uma ou duas do seu look) por 5 dias seguidos ou mais. Porquê? Para lavar e passar menos roupa, para fazer um exercício de estilo e de autoconhecimento, para mostrar que repetir roupa é legal (em contraposição ao #lookdodia), para valorizar a memória afetiva que uma roupa traz, etc.
PCV: Na sua opinião quais são as principais diferenças entre aquilo que era considerado a moda de luxo de há 10 anos atrás e a moda de luxo dos dias de hoje?
LP: O luxo de antes tinha um caráter mais de ostentação, hoje é mais de experiência, de qualidade. E por qualidade entenda-se também o cuidado com os processos em si: impacto social, impacto ambiental, etc.
PCV: Com as questões de sensibilização e informação, existe cada vez mais procura pelo vintage, roupa em segunda-mão. E os mais jovens são os primeiros a aderir e tem-se tornado “uma moda”. É importante por ter um tremendo impacto a nível ambiental e não só. Na sua opinião, estes novos hábitos de consumo podem ser um problema no futuro para as marcas e designers?
Vivemos cada vez mais na era da economia compartilhada. Estamos migrando da valorização do descartável para a valorização do compartilhado. Quanto mais pudermos prolongar a vida útil de qualquer objeto, melhor será para todos. E os jovens de hoje continuam a ter desejo de moda, mas sabem que esse desejo pode ser atendido de diversas maneiras: trocando, alugando, comprando peças usadas, etc.
PCV: Cada vez existem mais tendências por estação, a cada semana da moda existe cada vez mais diversidade e oferta dependendo de cada estilo, é tudo cada vez mais rápido. A moda tem vindo a perder qualidade por preferir a quantidade, ou não?
LP: Não acho. A moda está apenas acompanhando a velocidade da informação que a internet e as redes sociais criaram.
Livros de Lilian Pacce:
O Biquíni Made in Brazil; Pelo Mundo da Moda; Ecobags – Moda e Meio Ambiente; Alexandre Herchcovitch; Dicionário Adesivo para Pintar e Colar
Texto de Patrícia César Vicente, excerto publicado na PARQ em Maio de 2019