Crónica

Já nos preparávamos para ir à janela encostar o ouvido ao vidro antes do abrirmos. Sabíamos, na nossa ingenuidade rotineira, que os pássaros iriam regressar e nós sairíamos à rua com os raios de sol estremonhados e voaríamos intrometidos como o pólen a anunciar a Primavera. Faríamos uma parada rua fora com cada passo a representar mais uns minutos de luz.

De repente, tudo escuro. A chuva não se contivera e saltava pelos beirais fora, como se precipitasse o que daí viria, com a força das notícias a tornar aguaceiros em tempestade. Um mundo de pernas para o ar sem se ter preparado para fazer o pino. Gargalhadas regadas pelo calor dos dias, adiadas; abraços descombinados com a frieza de quem falta a uma reunião e o cheiro a incerteza de uma quase-Primavera que passou a um Inverno caótico. Teríamos de a ver florescer atrás de um vidro. Através do frio vazio das imagens.

Obrigámo-nos a parar. Parámo-nos à velocidade cruzeiro de uma vida que nunca abranda. Recriámos rotinas, falámos mais connosco do que alguma vez o haviamos feito e cedemos à pressão social para sermos criativos, inovadores e destemidos, mesmo quando a única coisa que nos entrava pela janela eram palavras como: infectados, internados, mortos. Sustivémos a respiração, para aguentar mais tempo debaixo deste diluvio que não hasteava a bandeira branca como sinal de trégua. Contornámos a tragédia dando-lhe música à janela, fazendo arte com tachos e panelas, enganando a saudade por atalhos e criando vida com retalhos.

Vimos a Primavera de dentro. Depositámos esperança nas folhas que cresciam sem aviso. A árvore, escura como a nossa esperança no momento de nos confinarmos, já retribuia luz verde à esperança que durante dois meses se tingiu de cinzento. Não tocámos na Estação do amor, porque a nossa paragem certa era a segurança. Nos anos que se seguirem, já não contaremos Primaveras, porque haverá sempre um a ter-nos fugido das mãos.

Deixámos de contar Primaveras

Texto e fotografia: António Barradas, Para revista PARQ Julho 2020