Miguel Palma e Luís Palma
Texto de Carla Carbone
O primeiro olhar resvala para um grupo de desenhos que se encontra imediatamente à frente, quando entro na galeria. São representações de pontes, sobretudo pilares, circundados por discos coloridos que parecem deslocar-se da esquerda para a direita. Um grande estirador, com o tampo inclinado na vertical, posiciona-se mais à direita, e deixa-se revelar, na superfície, por um conjunto de vestígios sobre a ponte Arrábida no Porto (ou outras pontes), e por uma pequena engrenagem, que denuncia um movimento mecânico em potência. O estirador que Miguel Palma usa, para fazer a sua instalação, foi deixado algures em Portugal, por um arquitecto estrangeiro que, ao ausentar-se do país, não pôde transportar consigo o estirador, pois o mesmo era muito pesado.
Ainda à entrada da galeria, tenho a necessidade de olhar, para o interior, fazendo um movimento circular com a cabeça. Da esquerda para a direita. Encontro desenhos de Miguel Palma, fotografias de Luís Palma, novamente desenhos de Miguel Palma, estes a lembrar as maquinas de Duchamp, o pesado estirador, e por fim, fotografias do interior de uma roulote, realizadas, mais uma vez, por Luis Palma. Parece ser uma daquelas exposições em que se procura contrariar a tendência de criar, ou impor, um percurso linear ao visitante, onde existe um principio e um fim, ao invés de sermos nós a realizar esse percurso, de modo autónomo e independente.
Porém, interrogo-me se esse movimento circular na minha cabeça, provocado pela disposição das peças, não teria sido feito de propósito, justamente para simular o movimento que o criador, o então engenheiro Edgar Cardoso, realizou quando se encontrava de baixo da ponte, e justamente para provar que a mesma era segura.
Há toda uma relação entre a máquina, engenho, e a obra de Miguel Palma. Uma obra que assenta numa crítica ao progresso, nos termos em que o mesmo conduziu a um estado de ruina, com a crença cega nocapitalismo.
Vogam sobre o observador, pensamentos sobre o efémero. sobretudo quando o olhar se detém no estirador, um pesado instrumento fazedor de desenhos rigorosos e de sonhos de progresso. Assola à mente um sentimento de melancolia, melancolia por um tempo de optimismo em torno das máquinas que já acabou, ou a crença no progresso que perdeu o seu encanto.
No trabalho de Miguel Palma há todo um passado de máquinas: do automóvel às armas de precisão, dos telescópios aos aviões. E ainda as pontes em miniatura. Miguel Palma fez muitas, e quando estava nos Estados Unidos chegou mesmo a construí-las em betão. Tal como o estirador do arquitecto desconhecido, quase iam ficando por lá, sem possibilidade de as reaver, ou trazer depois. Por serem muito pesadas, e dificeis de transportar. A peça instalada na galeria Insofar, simula esse periodo nos Estados Unidos em que Miguel construiu maquetes de muitas pontes, constituindo um elemento representativo dos moldes lúdicos que realizou nessa altura. Existem alusões a aparatos mecânicos mas não sem antes assegurar significacões que não se fecham sobre si mesmas. Que se manifestam plurais, se opõem, e promovem sentidos múltiplos, questionamentos e debates em vários planos, como o debate artístico, económico, político. Com humor, e em oposição, Palma utiliza a máquinas como ponto de reciclagem/viragem, até de partida, para novas leituras. Além da sua relação com o progresso e a sua desrealizacão, tornada possível com a adopção, por oposição, no desenho, de elementos mecânicos e da fotografia, Miguel Palma permite, com o humor, atribuir uma certa ambiguidade às peças, isto é, tem o cuidado de não encerrar, as pequenas máquinas, num exercício de nostalgia sobre um progresso que falhou, mas antes ampliar e tornar inesgotáveis as “possibilidades de interpretação”.
Entre a máquinas de fazer pontes, como parece ser o molde em madeira que assenta sobre o estirador, e as fotos que se seguem a esta peça, e se encontram à sua direita, reside um longo silêncio. Um silencio perturbador. Por mais que o curador explique que se tratou de um achado. Num dia em que passeava com o próprio fotógrafo Luis Palma, numa das margens do rio. Os dois caminhavam de modo descontraido quando terão dado por um barulho proveniente de alguém a tocar uma bateria. A curiosidade fe-los caminhar até perceberem que o som vinha de uma velha autocaravana. Lá dentro encontrava-se um músico que tocava fervorosamente. Veio, mais tarde, a explicar, que teve que se refugiar naquele lugar para poder praticar, porque onde residia anteriormente não podia fazer barulho.
As fotos, em formato triptico, revelam o interior de uma autocaravana já antiga. Uma porta, ou várias, um prato lusidio de uma bateria, pretences vários, como objetos pessoais, compõem esse interior, e articulam-se em torno de uma monocromia dourada.
Mas, voltemos ao hiato, à relação, ou nao relação, existente entre o estirador e as fotografias, de Luis Palma, dispostas sobre a parede. Que outras relações podem existir entre as peças melancólicas de Miguel Palma e as fotos, algo cruas e socialmente comprometidas, com que somos presenteados por Luis Palma?
Terá Miguel Von Haffen Peres procurado deixar ao leitor a ideia do ecrã branco, de um “para lá do visível ”, no sentido de Deleuze, o de fornecer um fora de campo, um espaço off, uma existência além dos contornos fechados da fotografia? O que terá acontecido entre o passeio junto à ponte e a autocaravana? Que outras histórias perdemos, e o que elas nos poderiam acrescentar à história destas fotografias? A um dado momento, Deleuze diz-nos o seguinte, em “Imagem e movimento”, “tanto assim é que há no quadro muitos quadros diferentes. As portas, as janelas, os postigos, as frestas, os vidros de um carro, ou os espelhos, são outros tantos quadros no quadro”. Como se fosse um “quadro dos quadros”, com vista à divisibilidade, constituído por vários pontos de vista, em cima, em baixo, reduzido, ampliado, produzindo uma sensação de “decalage”, de sentidos algo paradoxais, ou ainda uma desterritorialização da imagem, como diria ainda Deleuze. Concebendo, ao leitor, a oportunidade de construir, ele próprio, “uma imagem mental” de um todo da exposição, de assim a concluir, com o seu próprio cunho.
Breve Sinopse:
A exposição Arrábida Bound, patente na galeria Insofar, teve origem numa ideia de Miguel von Hafe Pérez em reunir o trabalho de dois amigos, Miguel Palma e Luis Palma. A ponte Arrábida do Porto foi o elemento agregador e o motor de desenvolvimento desta ideia.
A exposição com curadoria de Miguel Von Haffen, decorreu de 18 de Novembro a 7 de Janeiro na Galeria Insofar, Rua Capitão Leitão , 53 Marvila – Lisboa
Carla Carbone, Janeiro 2022