Densidade e memória
Texto de Carla Carbone
Raios de luz despontam de um pequeno rectângulo, fixado a uma das paredes brancas, existentes na galeria Brotéria. A peça densidade e memória, 2023-2024, disposta ortogonalmente, revela-nos duas faces. De um lado, protegida por duas lâminas de vidro, ostenta uma correspondência com alguns dizeres, escritos à mão pelo artista, aparentemente desalinhados; do outro, um céu, descobre-se, num inequívoco azul, enleado por uma fileira de nuvens, recortadas.
Uma profusão de raios e sombras entretecem, enlaçam os seus destinos, e irradiam ao longo da parede. Há todo um “arco-íris” que também concorre nesta explosão de tiras de luz (que despontam no plano), sugerindo as paredes de uma casa, ou o esgar de uma porta que permaneceu suavemente aberta, e deixou, entretanto, entrar uma nesga de claridade. Ou ainda, o entendimento do que pode estar a acontecer do lado de lá. Existe toda uma interioridade. Primeiro vislumbra-se a peça, depois o olhar é impelido a descrever um arco no espaço, em busca de mais estímulos. É-se, subitamente, arrebatado por uma inesperada penumbra, que adensa, e revela, afinal, uma sala vazia. A lenta adequação do olhar, dá lugar a um tombo, que vertiginoso, aquiesce diante o desconcerto. Como uma dor fantasma. Era Ortega e Gasset que dizia que a experiência estética se resumia, por vezes, a um exercício óptico, a uma constante acomodação ocular.
A exposição, densidade. e memória, de Carlos Nogueira, dá continuidade ao trabalho que tem empreendido em torno dos opostos, como a luz e a sombra, a simplicidade e a transformação1, e que pode ser presenciado através, primeiro, 1) do cuidado que revela em dispor, sobre a parede, um pequeno objecto que irradia luz, em contraste com uma sala ampla e escura, que se descobre vazia, 2) no anseio em comunicar com clareza, 3) na intencionalidade em escolher o que não se quer dizer.
No entanto, a luz, é reveladora de espaços. A luz, ou o fogo, como entenderia Éfeso: o fogo transformador de todas as coisas, ou a luz, como a veria Platão, na República: “ainda que exista nos olhos a visão, e quem a possui tente servir-se dela, e ainda que a cor esteja presente nas coisas, se não lhes adicionar uma terceira espécie, criada expressamente para o efeito, a vista nada verá, e as cores serão invisíveis.”2
Na segunda sala, de configuração trapezoidal, alinham-se, à direita, 14 molduras em ferro, paisagem de mandar, 1980, contendo composições monocromáticas que vão variando a inclinação, da primeira à décima quarta.
Cobertas de esmalte negro, espelham o rosto de quem se posicionar diante. O mesmo (rosto) vai desaparecendo, e esfumando em memórias, como se estivesse a erguer a cabeça, em direção à luz, em direção ao céu? Um apontamento sobre o perecível, o transitório. Evocando, em simultâneo, a metáfora do progresso e da racionalidade, as diversas versões da modernidade, como diria Nicolas Bourriaud, a centelha das progressões matemáticas, o reducionismo, as dores fantasma, (mais uma vez), evocando Sol Lewit e as Variations of Incomplete Open Cubes, 1974.
Carlos Nogueira
Galeria Brotéria
Rua São Pedro de Alcântara 3 Lisboa (Chiado)
Até 18 de Nov
1 Grau, C (2022) mais desenhos de casas para ti. (11/03/22 a 30/04/22). Folha de sala da exposição. Galeria 3 + 1
2 Platão (2023) A República. Fundação Calouste Gulbenkian. Pág. 306