Texto por Manuela Marques

Fotografia de Joana Linda

“Miquelina e Miguel” é a recente criação de Miguel Pereira (referência incontornável no panorama da dança, em Portugal), uma proposta arriscada e, simultaneamente, despretensiosa, pela simplicidade do encontro entre mãe e filho, lado a lado, desta feita, pela primeira vez juntos, em cena, no teatro.

Miquelina tem 87 anos, decerto, repletos de inúmeras histórias para contar mas, hoje, possuí uma condição neurológica degenerativa – de demência –, que lhe permite apreciar, viver, cada instante de forma espontânea e atemporal.

fotografia de Joana Linda

Miguel iniciou esta viagem desmemoriada, há cerca de uma década, aquando o diagnóstico. Esta circunstância possibilitou-o de redescobrir a sua mãe, que habita um universo particular – meio non-sense, onde, inclusive, ele se revê –, e assim escrever um novo capítulo na relação com ela, aprimorando o vínculo afetivo.

Em “Miquelina e Miguel” a verdade acontece, diante do nosso olhar, à medida que a peça se desenha num exercício de atenção e cumplicidade, pautada pela ternura da relação entre o artista e a sua mãe. O público é recebido como se entrasse no salão de festas, da casa de família, em Tomar, onde ambos esperam sentados, em cadeiras banais, no palco – dispositivo cru, praticamente desnudado de acessórios cénicos. Organicamente, sem a pressão do tempo ou da narrativa, e partindo de recordações pessoais, vão surgindo pequenas conversas e brincadeiras entre os dois, que desaguam, inevitavelmente, em duetos de dança.

Este espetáculo é uma reflexão sobre a Memória e, paradoxalmente, sugere que o esquecimento, consequência de se perder a memória, seja encarado numa perspetiva benévola, cuja contingência de não nos lembrarmos se revela libertadora, uma bênção. Indagando, portanto, que deixamos de ser reféns de memórias latentes que, quer recentes ou antigas, podem condicionar o nosso comportamento na vivência do presente, dado que funcionam como lembretes perenes.

O neurocientista Richard F. Tompson afirmou que “Sem memória não há mente.”, na sequência lógica do Ser Humano possuir e desenvolver Consciência, facto que sublinha a ideia de que a nossa experiência do presente é sempre regulada pelo passado registado.

Durante a peça, é surpreendente reparar que a música e a dança desencadeiam reações em Miquelina, parecendo ativar memórias, não verbais, no seu Corpo. Haverá memórias que permanecem, e permanecerão, guardadas e ao dispor de ações vitais e sociais? Segundo a neurociência a Memória1, de longo prazo, comtempla, grosso modo, processos de Memória Explicita/Declarativa – acessível e ao serviço da consciência – , e de Memória Implícita/ Não Declarativa – não inteligível, conscientemente –, e, quiçá, seja este o mecanismo que explica o fenómeno de o Corpo reagir, por reflexo, mesmo em caso de deterioramento cerebral.

Neste delicado espetáculo testemunhamos a construção permanente de memórias momentâneas, num jogo de improviso e imaginação que origina um diálogo autêntico, entre os dois, livre de julgamentos, onde decididamente a dança é espaço de comunhão.

Miquelina e Miguel, pela sua partilha, consagram, sem-cerimónia, um novo paradigma: a memória como lugar dinâmico, sem necessidade de depósito, à semelhança do movimento, autónomo e em constante trânsito, ou seja, irrepetível.

Com nobreza e honestidade, Miguel Pereira oferece-nos a oportunidade de observar a demência com a justa leveza, sem carga pejorativa, demonstrando-nos, pela sua relação lúdica com a mãe, que viver é estar disponível para caminhar de mão dada.

«MIQUELINA E MIGUEL», de 05 a 07 Julho, no TBA (Lisboa) | Direção artística MIGUEL PEREIRA | Interpretação MIQUELINA DA COSTA FREDERICO e MIGUEL PEREIRA | Colaboração dramatúrgica PAULA CASPÃO | Apoio à criação BIBI DÓRIA | Desenho de luz HUGO COELHO | Colaboração no Desenho do Espaço Cénico ANDRÉ GUEDES | Produção O Rumo do Fumo | Coprodução Teatro do Bairro Alto | Fotografia JOANA LINDA

1LEDOUX, Joseph; “O Cérebro Consciente – uma Longa História da Vida”; Temas e Debates – Circulo de Leitores; 2020 _ pp. 327-352

texto por Manuela Marques para PARQ_75.pdf (parqmag.com)