Do alto da montanha
Texto de Carlos Alberto Oliveira
Desde a aurora dos anos noventa do século passado que Damon Albarn lidera os Blur. Pelo caminho concebeu projetos com inúmeros artistas, dos quais o mais notabilizado é o grupo Gorillaz. Recentemente arquitetou o seu segundo álbum a solo, recorrendo a dois músicos habituais, o antigo guitarrista dos The Verve Simon Tong e o saxofonista Mike Smith. O périplo pelo Uruguai, Montenegro, Irão e Islândia, o seu refugio mais apreciado, serviu de engrenagem para o disco.
Nunca a melancolia nostálgica da vocalização de Damon Albarn nos prendeu tanto. As suas palavras podiam ser as nossas. O seu reflexo no espelho o nosso. A sua inquietude e introspecção as nossas. O seu novo disco The Nearer the Fountain, More Pure The Stream Flows exercita a capacidade contemplativa que temos para transformar as experiências do passado em novas leituras de vida. E que tesouro este artista guarda.
As paisagens vivenciadas são traduzidas em sensações, que encontram na natureza a sua expressão. A vista para o monte Esja inspirou-o certamente, tendo sido objeto onírico, para uma canção. As paisagens e os locais dão corpo às canções, como se as memórias habitassem esses espaços. Neste sentido, “Esja” é composta por uma brilhante corrente eletrónica, violinos chilreantes numa simbiose biológica, como se sobrevoássemos um dos seus caudais de água. Também nesse sentido, embora entre paredes, “The Tower of Montevideo” incorpora um ambiente jazzy com elementos apimentados por sons latinos, que nos transportam inequivocamente para um salão de baile decadente, condensado em fumo de tabaco, strippers e homens solitários nos cantos escuros da sala.
A faixa de abertura, e tema que dá nome ao disco, vaticina para uma viagem contemplativa para uma descoberta interior. Como se advertisse em código morse o ouvinte de que as emoções, presas à memória, necessitassem desse sinal para assumir a forma física. Para que a memória corporizada possa ser observada na terceira dimensão, sob todos os ângulos possíveis. As memórias também podem funcionar como catalisadoras de referências musicais de outros artistas. Se por um lado “Giraffe Trumpet Sea” evoca ambientes popularizados por Brain Eno, já “The Cormorant” veste-se de uma matéria próxima de uma canção de David Bowie, em Black Star. Um dos singles mais notáveis do disco “Royal Morning Blue” é provavelmente o mais próximo do ADN de Albarn nosso conhecido. O tema discorre como um rio monte abaixo, numa alucinante viagem pautada pelo saxofone, guitarra cristalina e teclados que lembram um velho sintetizador Casio. A canção “Combustion” salta como um grito comprimido que se expande ao ser oxigenado pelos ritmos frenéticos do piano, do saxofone estridente e da guitarra rouca. Como se o vácuo fosse fertilizado por esse grito e gerasse vida a uma nova estrela.
Em “Daft Wadder” o piano e os sintetizadores comungam em harmonia, numa frágil canção. A melancolia transveste-se numa saltitante corneta como quem emerge de uma plateia às escuras de um Cabaret para o palco. A melancolia encontra novamente o seu epicentro em “Darkness To Light”, como se protagonizasse o alinhamento dum concerto num teatro de variedades. A estrela do Norte “Polaris” aponta mais um caminho para o horizonte longínquo. A batida é marcada por um metrómano de um Tango argentino, embrulhado em sintetizadores luxuriantes e um potente saxofone a liderar a caminhada. A fechar o álbum, “Particles” assume a forma de uma bela balada, tecida em sintetizadores, piano, guitarra e partículas de água, que assumem o seu estado mais vibrante ao encerrarem o disco num pacífico e sereno estado contemplativo.
A jornada faz-se encadeada num alinhamento que pede para ser seguido pela trilha que Albarn desenhou para este disco. As músicas entrelaçam-se. Nada foi deixado ao acaso. Como se se tratasse de um mapeamento sideral de contacto connosco e o espaço que ocupamos. Por vezes melancólico, por outras exultante.
texto de Carlos Alberto Oliveira para a PARQ PARQ_72.pdf (parqmag.com)