Texto de Manuela Marques @ma_da_faca
“ARENA” intitula o mais recente trabalho do Outro, dirigido por Sílvio Vieira, é uma peculiar incursão espacial para resgatar a imaginação e a beleza, lugar imerso num silêncio abafado pelas vicissitudes voláteis de uma sociedade tecnificada e ruidosa – a nossa.
Em conversa, pós ensaio, o encenador concordou com a ideia de que, em pleno século XXI, apesar da constante sofisticação no ato de comunicar, estamos a perder a capacidade de ouvir, de nos ouvirmos, declarando que: há uma velocidade estonteante, que não se coaduna com o nosso potencial de apreensão do que nos circunda, ou seja, há um ritmo interno e externo: o ritmo que precisaríamos para nos conectarmos verdadeiramente e o ritmo a que realmente, hoje, tudo acontece, e talvez por isso as coisas fiquem tão vazias… Quiçá, e consequentemente,de forma a combater essa surdez iminente, este espetáculo constrói-se e experiencia-se pela ação de escutar, em escuta ativa, tanto internamente – dentro de cena, entre o elenco e a equipa –, como externamente quando ampliada à presença do público.
“ARENA” existe simplesmente, num exercício sério de beleza, constituindo-se como uma obra disruptiva, instintivamente por reação aos movimentos e temas politizados que a arte usa estrategicamente para se posicionar e/ou estabelecer, inclusive institucionalizar. Pressupondo-se que o ato artístico apartou, há muito, a missão da arte pela arte, na procura do belo, sem se cingir por demandas fraturantes de teor político ou de urgência ideológica, ou seja, pensar e produzir um objeto de arte deixou de ser um gesto de resistência íntima, e imparcial, para se dispor mais como instrumento reivindicativo.
Como tal, foi com astúcia, sensibilidade e verdade que Sílvio teve a coragem de romper e contrariar as dinâmicas atuais, fazendo valer o seu direito de liberdade artística, ao conceber esta peça. Oportunidade que se tornou efetivamente viável, dado à sua singular conjuntura, uma vez que este é um dos projetos financiado pelo Ministério da Cultura, ao abrigo do Programa Garantir Cultura – medida extraordinária, não concursal, que permitiu a atribuição de verbas, quase imediata, a diversos artistas para desenvolverem a sua atividade –, e posteriormente conseguiu, também, o apoio da Câmara Municipal de Lisboa – um bónus, como referiu o encenador –, que veio assegurar maior conforto à decisão de realizar o espetáculo numa sala não convencional.
Nesta obra é impraticável dissociarmos o mise-en-scène de “ARENA” do local onde reside – a Garagem –, porque se revela ser componente central na peça. Sílvio explica que: aqui o espaço é tão concreto e específico, pela sua arquitetura, que o espetáculo acabou por se contaminar por ele (…) diria que foi o elemento mais inspirador no processo de criação, até do que as referências originais que tínhamos na proposta teórica. Não é possível ignorá-lo quando o temos de habitar. E interessa-me muito poder dialogar com os espaços onde apresentamos. Contudo, a vontade de ter um lugar próprio já existia antes de o conseguir (…) sendo uma companhia jovem, estamos sempre mais condicionados e mesmo que se esteja já programado por um festival ou um teatro, lidamos sempre com constrangimentos de logística ou limitações artísticas, algo que não sucede quando se possui autonomia de espaço, que apesar de dar muito trabalho, nomeadamente burocrático, dá imenso gozo e é bastante libertador.
Esta “ARENA” é terreno de permanente descoberta, em que redigir a sua narrativa revela-se numa odisseia com detalhes que evocam memórias, visuais e sonoras, de imagens cinematográficas – do filme realizado por Kubrick em 1968 –, especialmente pelo ímpeto da curiosidade, na exploração e interação com objetos e pelo confronto com o desconhecido.
A peça possui um universo muito particular, que emerge pela relação do Corpo-coletivo Jan a habitar um espaço – integrante da malha urbana, a Garagem do Chile –, construindo a vivência de um dia-a-dia sem imprevistos nem conflitos, onde tudo sucede ordeiramente, até se deparar com uma figura estrangeira – o Astronauta (exímia interpretação de Anabela Ribeiro) –, que chega sem aviso prévio e desencadeia simultaneamente surpresa e suspeita.
Jan é uma espécie de entidade pulsante, massa de corpos, cujo os intérpretes que a compõem parecem figurar fatores inerentes à vida, e que a potenciam, como seja: a luz (Pedro Peças), o som (Miguel Galamba), o ritmo (André Cabral), a curiosidade (Inês Realista), o risco (Catarina Rabaça) e o engenho (Miguel Ponte).
Em “ARENA” há isenção de Palavra como expressão, qualidade que permite uma rara comunicação com o público, aberta e sem contaminar a sua interpretação. Quando interrogado sobre o porquê de dar voz ao silêncio, retirando ao discurso (da cena) o código verbal, o encenador respondeu que: em Teatro, o espetador está muito habituado e condicionado para procurar logo, à partida, o fim da história, por isso nesta proposta parece que se oferece uma história mas depois ela começa a dissolver-se (…) o Texto é uma ferramenta fortíssima que pode dominar completamente toda a percepção do espectador em relação aos elementos mais abstratos da peça, e tudo de repente passa a ser visto por essa lupa – da narrativa –, é um perigo que reduz a potencialidade da abstração, (…) a Palavra é muito determinante, e o teatro muito textocêntrico, mesmo quando não o quer ser, acaba por ser, e por isso quis muito lançar-me para este abismo.
O silêncio oferece um ambiente propício à contemplação, assim como possibilita a existência, é o princípio do som, os especialistas (musicólogos) defendem que a Música surge antes da Palavra, e neste projeto apenas há apontamentos sonoros, lampejos que evidenciam a quietude de cada paisagem.
Curiosamente, não tendo sido intencional, esta opção pela ausência da Palavra confere, ainda, ao espetáculo o benefício da inclusividade na captação de públicos, tornando-o acessível para uma franja de pessoas que necessitaria de tradução.
“ARENA” guia-se pelo sentido, despe-se de vocábulos elaborados e reabre a dimensão do quimérico. Logo o seu nível de inteligibilidade, de que forma chega e o que comunica com a audiência, é uma inevitável incógnita – um receio que Sílvio Vieira confessou ter, por arriscar e nos presentear com tão singela criação.
texto Manuela Marques
fotos Leonor Fonseca
«ARENA», até 19 Dezembro 2021, na GARAGEM DO CHILE, Rua Carlos José Barreiros, 21 A, Lisboa
direção SÍLVIO VIEIRA | interpretação ANABELA RIBEIRO, ANDRÉ CABRAL, CATARINA RABAÇA, INÊS REALISTA, MIGUEL GALAMBA, MIGUEL PONTE e PEDRO PEÇAS | colaboração NÍDIA ROQUE, cenografia e figurinos ÂNGELA ROCHA | desenho de luz MANUEL ABRANTES | assistência de cenografia DIOGO GONÇALVES | fotografia LEONOR FONSECA | vídeo ANTÓNIO MENDES | operação de luz JANAINA GONÇALVES | produção OUTRO