Crónica de Patrícia César Vicente

Ilustração de Tamara Alves

E tornam-se mais selvagens e imprevisíveis quando se sentem enganados. Saíram um dia quando ainda mal sabiam andar. Mais selvagens, mais velozes, mais enérgicos, era tudo um mais que só os fazia sentir menos. Cada vez menos. Sofriam quando experimentavam a normalidade. Mas queriam ser normais. Queriam, e isso queimava-os por dentro. Era a extrema tentativa de domesticação da alma. Era ferida que se tornava chaga. E não perdiam a essência por mais noites e dias que estivessem enjaulados. E nem as vezes que foram apedrejados ou abandonados os fez perder a essência. Só queriam voltar para casa. O único lugar possível de serem delicados era a casa, a sua casa. Agora vazia, e com total ausência de ninho. As portas abriam sozinhas, as persianas meio descidas, o eco no corredor. Agora havia tanto espaço para correr, e o silêncio fazia eco.


Todos os animais selvagens sonham voltar para casa. Os seus pares não sobreviveram ao tempo. Não tiveram tempo para os criar.

Selvagens correm pela vida, e muitas das vezes nem é a sua. É pela sobrevivência dos seus. Da sua espécie. Protegem, e pouco se protegem, sabem que sobrevivem. A morte certa nunca lhes acertou por mais imprudentes que tenham sido. A brutalidade dos seus ataques é puro instinto, é apenas para ter a certeza de que não os voltam a atacar e os deixam em paz. Nem que seja por momentos.

Só querem fazer o seu caminho para casa e descansar, sem medo, sem violência, sem gritos, sem ansiedade, e em segurança. Passar uma noite segura e tranquila.


Os animais selvagens atacam, é verdade. Mas são mais as tentativas de ataque aos animais selvagens do que eles aos outros.

Não é por acaso que são sempre os animais mais selvagens que estão em vias de extinção. Do outro lado são cada vez mais os que os querem caçar. Quase sempre para os exibir como troféus, e alimentar egos. Nunca é para alimentar famílias ou matar à fome, é por puro prazer e divertimento. E pelos vistos, afinal, esses não são considerados selvagens. Não estão catalogados ou rotulados. E o mundo parece que lhes dá consentimento para matar.


Os selvagens conseguem prover alimento com mais facilidade pela sua atitude natural e também aprendida entre várias caçadas que fizeram sozinhos. E realmente alimentam-se e partilham. Não atacam para ter a cabeça de um animal como peça decorativa na sala.

Se os observarem com atenção, eles não se movimentam muito. Gostam de estar sentados, deitados, a bocejar duzentas vezes por dia, e são até um bocado desajeitados e trapalhões. Dias inteiros a observar, e desde cedo a aprender a distinguir sons, de onde vêm, de quem são, para que serve, de quem será, qual o objectivo, qual o intuito, o que fazer, como fazer, como resolver, como tratar, como saber. Como? Porquê? Onde? Para quê?

E sim, têm a majestosidade pela forma como caminham, pela forma como rosnam e facilmente os distinguimos pela forma de olhar. Podem assumir várias formas, são camaleónicos, e enigmáticos.

É por isso que são selvagens. E só o deixam de ser quando encontram qualquer outra espécie que também seja selvagem ou os deixe ser selvagens e não os magoe.

Os selvagens não se parecem nada com selvagens quando não se sentem ameaçados. São os mais pacientes e tolerantes, e se for preciso carregam qualquer outra espécie que tema passar entre toda a flora e fauna da selva. Caminham certos de que sobrevivem, seja qual for o ataque. São leais

Todos os animais selvagens sonham voltar para casa. E é o seu instinto que os irá para sempre guiar.

Crónica e Ilustração publicada em PARQ_79.pdf (parqmag.com)