Crónica por António Barradas
Dizemos, vezes sem conta, “a minha vida dava um filme”. É a forma corriqueira de nos vestirmos de estrelas de cinema ou o jeito mais brando de nos fazermos de vítimas. Os filmes são de todos os géneros. Alguns são curtas nórdicas; outros longas-metragens francesas e ainda há uns que resvalam para o cinema mudo ou, naqueles dias mais cinzentos, um drama onde alguém falece de doença prolongada e aparece uma música de elevador de fundo, para tornar tudo mais intenso, tal e qual as viagens do rés-do-chão ao 12º. Há para todos os gostos, até para quem adora a saga Twilight, ou como se costuma dizer: os que odeiam cinema.
Não somos realizadores, porque não interessa a ninguém construir. Destruímos sempre que temos a oportunidade. Efeito dominó de acções erradas é a sinopse que surge num balãozinho por cima da nossa cabeça antes da icónica frase nos sair da boca (não é “há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante”, nerds). Na maior parte das vezes somos o vilão maior, mas a história é nossa. Moldamo-la por não querermos guiões com troca de argumentos sui generis. Ainda nos resta a (in)decência, ora.
Há takes nos quais só queremos improvisar. Uma morte com desmaio, uma notícia de gravidez, o momento cortante de estar nas compras e não ter dinheiro para pagar ou aquele milésimo de segundo a mais que não evitou que tivéssemos o carro bloqueado. Somos bobine a despejar emoções de uma vida dividida em cenas sórdidas cheias de entretenimento para o público geral.
Quando começo a rebobinar a massa encefálica, dou sempre por mim a pensar no poster movie no qual a minha vida poderia estar bem escarrapachada. A conclusão chega rápido. Nenhum com o Channing Tatum, claro. Após a veloz certeza, vem um palpite directo no bullseye. Existe um filme onde consigo rever vários dias da minha vida, de seu nome: Groundhog Day (1993) – ou em português – O Feitiço do Tempo. Um jornalista preso no mesmo dia até encontrar o amor da sua vida. Todas as manhãs acorda com a mesma música, vê os mesmos acontecimentos e os percalços magoam-no da mesma forma. Não conto o final, porque odeio spoilers. A história conta-se rápido, mas o seu significado expande-se mais além.
O primeiro instinto seria culpabilizar os outros actores deste rocambolesco blockbuster do meu quotidiano. Afinal, dou por mim muitas vezes a ouvir as mesmas pessoas contar as mesmas histórias, a comerem de boca aberta ou – pasme-se – a fazerem as mesmas perguntas repetidamente. Os meus acessos de raiva interior poderiam fazer querer parecer tudo isto o prólogo do “7 Anos no Tibete”, mas desenganem-se. O filme é mesmo o mencionado acima, só não sou o Bill Murray. Até a música do despertador é igual.
São dias a fio sem entender se o mundo está do avesso (esta é fácil e já o sei há anos: está), se quem convive comigo tem a capacidade de reter informação igual à de uma fava ou se de facto estou no dia da marmota e não consigo escapar. Em dias nos quais não vou encontrar o pote de ouro no fim do arco-íris, fujo deste filme, mas não há nada que possa fazer. Até os figurantes vão entrar em cena para demonstrarem ter a fala decorada: “acho que nunca te contei esta história, cá vai….” .
Tenho medo deste loop constante, mas fascina-me ainda mais a representação alheia. Será que ninguém nota? Serei só eu aqui preso? Vou-me apercebendo, aos poucos, da falta de intenção dos outros actores e actrizes e, assim sendo, só tenho de me adaptar à história. Ou se calhar estou no Truman Show. Esperemos que não.
Tendo a cassete quase queimado a fita toda, devo confessar que não me posso queixar. Gosto de queimar o vídeo. De o rever, passar os olhos, dar-lhe as mãos, pô-lo aos ombros e mandar beijinhos para a TV nas partes mais emocionantes – antes isso que palmas quando o avião aterra, ok? São essas rotinas, trejeitos, idiossincrasias e pormenores que dão vontade de sorrir a meia haste nas alturas menos próprias e pensar: “não trocava este filme por nada. Vou voltar a carregar no play”. É este o meu Feitiço do Tempo e o encanto só acaba quando deixar de saber tirar o melhor destas repetições.
Texto de António Barradas para PARQ_73.pdf (parqmag.com)