Texto de Hugo Pinto para Parq #79
A Clean Feed Records é a única editora portuguesa de música com projeção internacional. A editora de jazz de vanguarda, agora sediada agora na Parede, existe desde 2001 e lançou mais de 650 álbuns de músicos de renome americanos e europeus e claro, portugueses.
Em média edita 40 álbuns por ano, é obra… E não há revista, site ou diretor de festival de jazz no mundo que não conheça a Clean Feed Records. Pedro Costa é o fundador da Clean Feed e é também curador de festivais de jazz pelo país fora, organizador de conferências, dá “aulas” a putos no Seixal sobre música improvisada e é convidado a assistir a festivais de jazz no estrangeiro.
É uma voz respeitada no jazz contemporâneo porque anda nisto há muito tempo…
Há quanto tempo Pedro Costa?
Eu comecei a comprar discos com 8 anos e já na altura gostava muito de editoras. Com 12 ou 13 anos, o que eu queira fazer da vida era ter uma editora. depois comecei a trabalhar nos discos em 88 e 89, sempre naquela ideia de que fazer uma editora era o caminho a seguir.
Qual foi o primeiro disco de jazz que te bateu?
Foi o Rejoicing do Pat Metheny e o Blue do Terje Rypdal, foi o meu amigo Gonçalo Canelas que me emprestou e aquilo foi uma revelação. Eu já tinha ouvido Jazz, aliás, a primeira vez que ouvi Jazz ou algo parecido com Jazz foi o Joe Jackson no Jumpin Jive. Eu fiquei: “Epá…eu gosto disto, gosto desta cena dos saxofones, dos trompetes e dos trombones… Tive a minha vida inteira à espera para ouvir isto.
Trabalhaste em lojas de discos, atender ao público valeu-te de alguma coisa?
Valeu … Fiz muitos amigos, permitiu-me conhecer outras coisas, trocar ideias e também era um sonho que eu tinha, trabalhar numa loja de discos.
Da Loja de música à FNAC, vendeste muitos maus discos, confessas?
Muitos e maus… Quando trabalhei na loja de música em finais de 80, princípio de 90, era os enigma, os Enigma, Enya, Phil Collins, o Rui Velosos, Mingos e Samurais… Aquilo era sempre a despachar
Entretanto tiveste a tua loja de música, a Trem Azul, em 2004. Porque é que tu achas que a loja não resultou? Vocês estavam no Cais Do Sodré, centro de Lisboa…
Aquilo funcionou, tivemos lá 10 anos… Só que pagávamos mil euros quando começamos e no fim era três mil euros e isso já não dava para nós. Quando pintaram a Rua de cor de Rosa, acabou
Criar uma editora de música, parece-me algo arriscado, já o era aliás há 20 anos… O que é que te deu?
Eu sempre quis ter uma editora de música. Em 2000 fui a NYC com uns amigos e fiz lá uns contatos para fazer a primeira gravação
Qual foi esse primeiro disco?
Foi o Implicate Order do Steve Swell com o Ken Filiano e o Lou Grassi. O Rodrigo Amado e o Paulo Curado entraram em dois temas nesse disco que foi um concerto no Seixal que gravámos
E dentro do jazz, tu tens tens particular apetência pelo free jazz…
O pessoal gosta de usar esse termo mas o Free Jazz é como chamar música clássica à Música Erudita, é um período da história.
Mas como é que se entra nesta música?
O Free Jazz é uma música desconfortável mas arrebatadora. É algo que puxa por nós… É uma música livre e é humana porque um improvisador que improvisa traz tudo com ele, as músicas que ouviu, as guerras por onde passou, os desconfortos, as alegrias, tudo…
A Clean Feed tem bastante reconhecimento internacional, aparece frequentemente referenciada nas revistas e sites de jazz, o que a distingue?
O que nos distingue é a prospeção. Editamos discos coreanos, chineses de colombianos, chilenos franceses, noruegueses… Nós selecionamos de um espetro mais vasto que a maior parte das editoras.
Mas há um som clean feed?
Espero que não.
Quem é que tu gostavas mais que entrasse no catálogo internacional? Com quem é que gostavas de gravar?
Eu gostava de gravar outra vez o Steve Lehman. Gostava de voltar a gravar o Ken Vandermark. Gostava de editar discos dos Mats Gustafson.
E se o Jamie Cullum ou a Norah Jones quisessem editar pela Clean Feed.
Eu, Tás doido ou quê? Não
Mas e se o manager da Norah Jones insistisse?
Nem lhe respondia… Eu não tenho interesse nenhum nisso… E nem preciso ir tão longe como a Norah Jones, já tive propostas de pessoal famoso e não editei porque a música não me interessa. Quando comecei houve um crítico que, como sabe que sou teimoso e gostava das coisas que eu gostava disse logo… “Agora que tens uma editora vais ter que editar coisas que não gostas”… Mas quer dizer, agora vou ter uma editora para editar coisas que não gosto! Isso não faz sentido.
O que é a Shhpuma?
A Shhpuma é a editora curada pelo Travassos para coisas que não são Jazz. A Shhpuma é muito variada. É mais variada até que a Clean Feed. O Travassos também o festival Rescaldo, que teve na Culturgest durante anos mas agora está por vários sítios como o CCB e o MAAT. A ideia da música que a Shhpuma edita foi porque na loja durante 10 anos havia uma sala de ensaio e apesar de eu chamar o pessoal do Jazz para la ir tocar e ensaiar… eles nunca apareceram. Quem aparecia era o Dj Ride, o Sam The Kid, o Tiago Souza, o Filipe Felizardo, o Norberto Lobo, a Joana Sá e malta do Free Jazz…O Rodrigo Amado, o Gabriel Ferrandini e o Pedro Sousa. E isso foi a incubadora da Shhpuma
Entretanto tu também foste curador de festivais por esse país fora, como é essa experiência? Um concerto em Coimbra é diferente de Lisboa?
É, claro… para já é diferente para mim: Se organizar um concerto fora de Lisboa estou a sair da minha zona de conforto. Mas o próprio público é diferente. Por exemplo no Porto é um público muito cladinho, os músicos só no fim é que percebem se a malta estava a gostar ou não. Lá o pessoal é muito bem comportado e isso é sui generis mas são bons ouvintes e gostam de ir a concertos de música mais arriscada
Não há nenhum clube de jazz em Lisboa… Deve ser a única capital europeia em que isso acontece, não?
As salas de concertos e clubs de Jazz que existem na Europa são todos apoiados. Os músicos vão tocar a festivais e nos outros dias da semana, já que estão nessas cidades, dão concertos em clubes para preencher a semana. Em Portugal estamos completamente fora do circuito da Europa Central. Se um músico estiver na Áustria pode ir tocar a Alemanha e a Polónia. É uma questão geográfica e de apoios
O festival Causa e Efeito que aconteceu este verão na Universidade Nova, e que incluiu concertos e palestras, é para repetir?
É para repetir sem dúvida. Foi um desafio que foi lançado para fazer um festival com uma ligação forte à Clean Feed. O tema deste festival é a igualdade de género e a utilização de instrumentos improváveis na improvisação e isso foi uma coisa que foi sendo construída sem grande consciência. A ideia é mostrar a improvisação com a eletrónica, com gira-discos , com pedal Steel, com lusofone, com “acordeon”. Fazer um festival igual aos outros não era uma coisa que me interessasse.
Queria fazer uma coisa atual, com Jazz atual e a tal utilização de instrumentos improváveis. As mulheres têm felizmente um papel importante nessa música porque trazem uma forma de tocar bastante diferente. Hoje até é possivel fazer Jazz e música improvisada sem solos, sem recorrer aos solos… O que é uma coisa incrível.
Portanto começamos a despir o Jazz das características todas… so swing, do solo, do homem branco a tocar sax tenor e partimos para outra coisa… o violino de Ardenger, a sanfona e o harmónio… Outra coisa importante é o Jazz ter saído da forma e no entanto continuar a ser Jazz… é difícil de dizer porquê. A atitude exploratória, o risco, talvez, embora essa atitude não tenha só a ver com a música orgânica
E depois há essa ideia dos putos no Seixal? Como é isso de ensinar jazz aos miúdos?
É muito giro. É algo que faço desde 2021. Agora vou com o Hernâni Faustino e o Pedro Sousa. Na primeira parte eu falo sobre a história do Jazz mostro uns vídeos, desde o princípio das canções do trabalho, o blues e por ai fora, o azz propriamente dito, as várias correntes… E na segunda parte, os músicos vêm, eu distribuo os instrumentos da escola pelos alunos porque eles só tocam flauta nas aulas.
No princípio todos traziam as flautas, mas agora já não trazem e utilizamos xilofones , metafones, caixas chinesas, pandeiretas, tamborins e eu dirijo a orquestra a tocar todos esses instrumentos e faço jogos com eles e os músicos improvisam por cima daquilo
Como é que os miúdos reagem?
Eles ficam doidos! Os míudos adoram essa coisa de soltar as amarras de inventar a coisa no momento, de tirar som de um instrumento que nunca tocaram antes e que não sabe muito bem como é que se toca.
Vives na Parede, praia, a Smup, crianças… Não trocavas isto por nada…Ès um menino da linha?
Sou pois.
Sempre foste ou houve uma altura que querias ir viver para Lisboa?
Eu vivi em Lisboa 2 anos mas eu gosto muito disto… Lisboa está sobrecarregada de coisas. qualquer coisa que faças lá é mais uma… Eu gostava de ter um club aqui… Quanto a parte de menino da linha, beto e tal…não me identifico é algo que eu sempre quis mudar nesta zona. Esse paradigma surf, do sol, do dinheiro, das cunhas… infelizmente a câmara de Cascais e Oeiras são câmaras muito atrasadas. No que toca à cultura, não percebem a importância. Não dá para ter festivais de verão e apresentar aquilo como o programa cultural do município como fazem em Cascais e Oeiras. Há muita diferença entre o entretenimento, que é uma coisa importante e que deve continuar, e arte, que é uma coisa muito diferente. A Arte é o que faz mudar e evoluir o mundo.
Como é que tu, como dono de uma editora, lidas com as plataformas de streaming e este novo modo de ouvir música?
O Spotify serve para as pessoas ouvir um disco antes de comprar por exemplo. Não é tudo mau… mas a verdade é que não rende nada. Para nós como editora é residual o que faturamos com o streaming. Se há 20 anos atrás nos dissessem que podes ter toda a música do mundo e pagas 50 euros por mês, isso era uma loucura. Mas hoje em dia faz-se isso mas paga-se 7 euros.
O dinheiro é dividido em 3 partes, a editora, o artista e o spotify . A parte do Spotify é quase limpinha, Quem é que gravou o disco? quem é que andou a ensaiar? quem pagou o estúdio. O spotify ganha um terço de todas as músicas que lá tem e 33% é uma margem brutal para quem pouco ou nada fez… O Spotify conta com os discos que continuem a ser gravados, os estúdios continuam a funcionar mas se não for rentável deixa de haver música nova e é uma coisa triste se algum dia deixa de haver música nova.
Ouço muitas vezes que.. “Já ninguém ouve álbuns, o que está a dar são músicas…”,
Sempre foi assim, o Pedro Tenreiro apontou bem que a música antigamente eram singles. O Álbum começou nos anos 50, o Charlie Parker nunca gravou um álbum por exemplo. Os primeiros discos dos Rolling Stones não são álbuns, são compilações de singles. A ideia de álbum é uma cosa mais ou menos recente.
O que é um Clean Feed?
Clean Feed é um termo usado em vídeo que significa alimentar um sinal puro. E isso é algo que facilmente se relaciona com a música e com esta música em particular. Nós não temos um trabalho de produção, eu não produzo discos no sentido de estar na mesa de mistura, de ter ideias para sobrepor instrumentos ou fazer pós produção. Aqui a ideia é um sinal puro, é música a vir dos músicos para os ouvintes.
Três discos essenciais da Clean Feed?
All is Gladness in the Kingdon dos Fight the Big Bull, é um disco brutal. Devils Paradise do Gerry Hemingway, em quarteto, foi o disco que lançou a Clean Feed internacionalmente. E o Beautiful Existence do Joe Morris.
E no futuro próximo, o que poderemos esperar da clean feed?
Vem ai o Per Zanussi com o Vestnorsk Jazz Ensemble que é um ensemble de Jazz de 13 músicos da zona de Bergen, no noroeste da Noruega. Vou também editar o Aruan Ortiz, num disco com o Don Byron, o Lester Saint-Lewis… É um quarteto com voz e tem uns rappers e é uma obra conceitual sobre as raízes da música afro-americana. E por fim vamos editar o Trespasse trio do Maryin Kuchen, o Per Zanussi e o Raymond Strid com a Susana Santos Silva e o Nataniel Edelman
Não há uma rádio para o teu som?
Não sei até que ponto teria interesse ter uma rádio de Jazz. è como um festival. Eu acho mais interessante haver um festival que tenha música Jazz do que um festival de Jazz… Bom é ouvir o Jazz misturado com as outras músicas. Eu acho que o importante é misturar as coisas, é estarmos a ouvir rádio e estarmos a ouvir os Pink Floyd ou os Rolling Stones e depois vem uma música do Ken Vandermark ou os dos Angles… E depois vêm os King Crimson e depois o Madlib… è uma forma das pessoas conhecerem outras coisas.
Sentes-te velho?
Já me senti mais novo.
Tu tens um filho adolescente e vês como é que o teu filho lida com a música e com a vida…
O meu filho é ais esperto que eu e é obrigação dele ser melhor do que o pai, a obrigação que nós temos é ser sempre melhor que os nossos pais. Quando estamos no carro , ele vai ver ao Shazan o que é , enm me pergunta nada e mete as músicas na playlist dele. E é giro mais tarde pôr uma música do Little Richard ou dos Rolling Stones, músicas que naturalmente não são da sua geração
Tu editas na Clean Feed em vinil, como é que vês este novo hype do vinil?
Esses números do vinil que ultrapassou o CD, esses números têm a ver com as reedições de Black Sabbath, dos Pink Floyd, dos Rolling Stones, dos Beatles, dos Dire Straits, dos Led Zeppeling, dos Deep Purple, mais do que têm a ver com realmente as pessoas ouvires os discos. Muita gente compra os Lps e mete na prateleira fechadinho e depois vai ouvir no digital. E os discos novos vendem-se muito pouco… isto é um engano… porque os músicos quando vão em digressão não podem ir carregados de vinis, levam poucos e o que vendem são CDS. O CD continua a ser um formato com boa qualidade de som, muito mais portátil, mais fácil de passar às pessoas, mais facil de promover. Eu não posso fazer uma promoção enviando 100 lps para críticos. Isso ia-me sair um balúrdio incomportável em portes de envio.
Eu acho que o CD na verdade não vai acabar, é o formato que eu vendo mais, mas deixou de ser um objeto valorizado. Já ninguém oferece um CD no Natal ou no aniversário. Já me chegaram a assaltar o carro e eu tinha por lá 20 CDS e não os levaram. Não é nada valorizado mas para quem quer ouvir música é um excelente formato.
Mas continuas a editar em vinil?
Mais porque os músicos querem e porque eu gosto. É como uma casa de vinho do porto, eles não ganham dinheiro a vender vintages e aqueles vinhos caros. Eles ganham é com s vinhos de 5 euros, mas o que dá prestígio a uma casa de vinho do Porto são justamente esses Vintages.
Tu agora tens uma casa na Malarranha, onde é isso?
Malarranha é no Alentejo, pertence ao município de Évora embora fique colada ao distrito de Portalegre
É onde te vês a passar o final da tua vida?
Eu adorava ir pra lá já… só que tenho filhos na escola e…
Mas é só por isso? Por ti era já?
Por mim era já … mas a minha mulher , que é já 10 anos mais nova que eu, ainda não sente este chamamento do campo. Mas eu cada vez que vou para lá nunca volto com muita vontade. Gosto de estar com as pessoas de lá. Existem em todo o lado pessoas interessantes e nos sítios como esse, o tempo corre mais devagar, os encontros são mais calmos. Há mais vontade de estar com as pessoas
Para mim trabalhar é é um sonho, gosto de estar sentado cá fora, com um computador e ir dar um mergulho na piscina ou ir dar um passeio e esta a ver o campo… em frente da minha casa tenho um vizinho com ovelhas e um burro, um cavalo e uma vaca… gosta daquela vidinha… de passar na Luzia e comprar os ovos das galinhas que têm nomes… é incrível.