A imprimir pequenas joias

Texto de Francisco Vaz Fernandes

Durante anos, cruzei-me com o Sal Nunkachov, uma das figuras incontornáveis dos desfiles de moda de Lisboa e do Porto. Acompanhava os eventos a partir dos bastidores a pedido dos criadores nacionais fotografando as coleções ganhando consequentemente familiaridade e cumplicidade com os modelos que naturalmente sentiam-se privilegiados por terem a atenção do fotografo. Em geral as suas fotografias mais marcantes eram retratos a preto e banco que tinham uma dimensão clássica e intemporal . Era impossível não ficar enaltecido pelo olhar do Sal e por essa razão eram os modelos que o procuravam e sem grandes exceções fotografou todos que foram ganhando protagonismo no panorama nacional. A fotografia de moda que em muitos países tem o estatuto de arte e é colecionavel, continua a ser secundarizada em Portugal e por isso, Sal continua à espera que alguém faça uma grande revisão do seu trabalho e o dé a conhecer a uma escala nacional.

Enquanto isso, por necessidade , procurou sempre imprimir as suas próprias edições pelo prazer de juntar grupos de imagens que realizava. Punha assim em prática a sua formação básica em artes gráficas recorrendo inicialmente a meios de impressão muito rudimentares, num espírito home made. Esse universo foi crescendo progressivamente a base de reciclagem de máquinas obsoletas que hoje são o mundo mágico de Sal Nunkachov. O apresso pelo que faz nessa área tem crescido e passou a ser procurado e foi assim que nasceu a sua pequena casa de edições , a Paper View Book, que hoje é procurada por todos aqueles que procuram produzir uma pequena joia super restrita.

Round About de Sal Nunkachov

Conhecemos-te essencialmente como fotógrafo, como nasceu , a editora
Paper View Book e essa paixão pelas artes gráficas?

Desde muito cedo senti um apreço especial pelo objeto impresso, sendo que a concretização do livro me pareceu a herança mais forte de todo o processo civilizacional. Quando comecei a paper View, fi-lo também como forma de editar os meus trabalhos, garantindo as decisões inerentes ao processo. Também não proliferam editoras de fotografia em Portugal, pelo que, para ser editado, quase que me vi na condição de fazer no registo “do it your self”.

Mas para imprimir tinhas que ter os meios e além disso conhecimentos. Como foi todo esse processo?

Eu fui adquirindo máquinas de impressão, especialmente modelos que estivessem obsoletas ou em vias de, porque exerciam sobre mim um fascínio estético e tinha todo o interesse em as preservar. O processo de aprendizagem fez-se a partir de muitas tentativas e de muitos erros, até porque nem sempre encontrava os manuais dessas máquinas descontinuadas. O meu interesse pelas artes gráficas, vem de trás, quando fiz um curso nessa área em Coimbra o que me abriu o interesse pelo offset. Mas estamos a falar de máquinas incomportáveis para dimensão domestica que o meu projeto mantém.

Que tipo de trabalhos podes agora desenvolver? Quem é que te procura?

Neste momento, maior parte dos trabalhos são em risografia, livros, cartões de visita ou posters, e serigrafia , tshirts e posters, para bandas, ou até mesmo para serviços de Take Away, visto que agora os concertos estão meio parados. Além destas técnicas, tenho também a possibilidade de usar gravura, estampagem a quente, duplicadoras a stencil, hectografia, cianotipia, entre outras. Faço muitas impressões híbridas que conjugam várias técnicas.

Round About de Sal Nunkachov

Agora também és conhecido pelas publicações que tens realizado. Como é que consegues gerir o volume de pedidos?

Quando começei a publicar para mim, tinha já em mente lançar também coisas de outros autores que gosto, proporcionar edições que fossem de alguma forma especiais. Tenho publicado de bastantes pessoas sem me preocupar muito com uma coerência editorial. A linha editorial resume-se de facto ao “eu gosto”. Na lista de livros mais recentes conta com publicações de Andrew Kuykendall, André Lemos, Derek Beaulieu e James Knight que me deixam orgulhoso. Publicar um autor como Dereck Beaulieu, um reputado poeta que eu admiro é sem dúvida algo que me orgulho e é desde já um ponto alto na curta vida da Paper View Books

O teu “eu gosto” , como referes, segue uma linha editorial, ou não é uma preocupação primeira e surge de encontros com os autores que gostas? Como é que tudo se processa?

A linha editorial segue no essencial meu gosto, como disse.

Mas como é que isso acontece? Como e quando decides vou publicar aquele autor?

Não nego que é um processo que em grande parte é intuitivo, com algum acaso. Depende se determinado artista se revê no projeto que proponho. Nem sempre tudo é imediato. Há sempre contratempos, como é o caso de certos fotógrafos que gosto, que não tendo material ou já estando comprometidos com outras editoras, deixam a promessa de mais tardar fazer algo comigo mais tarde. Também há fotógrafos que já estão previstos mas que demoram mais tempo a juntar material para ser publicado. Cada caso é sempre único, mas sempre que avanço com um convite é porque há á partida alguma afinidade correspondida.

Capa de ctalogue saisonee do poeta Derek Beaulieu

De todas as edições que já publicaste qual delas te enche mais de orgulho e porquê?

Não há propriamente uma, há várias. Das primeiras edições destaco o livro “Sand”, da Leonor Ribeiro, que foi fotografado na praia. Dei-lhe uma capa a partir de uma folha de lixa e quando folheamos o livro há uma noção física da areia. Foi uma edição bastante complexa, mas gostei de pôr a ideia em prática e do resultado final. O último do Andrew Kuykendall foi todo encadernado à mão e foi uma verdadeira loucura. Apercebi-me disso quando recebi as primeiras encomendas e tive de meter a mão a obra e encadernar as cópias para enviar. Custou, mas entretanto já encadernei a mais, para encomendas futuras. Na altura não pensei no grau de dificuldade. Mas todas as publicações têm particularidades que lhe trazem alguma singularidade e por isso tenho dificuldade em escolher uma. O Transvision, por exemplo, que foi impresso em papel vegetal, criando uma narrativa de acumulação, com as paginas a comunicar duma forma quase premonitória do próprio percurso era algo muito singular. O Because, pelo tamanho. Tem 84 cms, também foi uma publicação deveras desafiante. Estou agora a terminar uma outra desta vez com 70 x100 cms, que está claramente a ser um processo de luta.

Estamos sempre a falar de edições com poucas cópias, que podem quase ser consideradas como uma obra de arte. Quem as procura?

As edições andam em torno das 100 ou 50 cópias. É um universo reduzido, maioritariamente procurado por pessoal da Europa e dos Estados unidos, apaixonados por publicações tão particulares. Encontram-se disponíveis por encomenda a partir de contacto on-line. Também em alguns espaços físicos, mas muito poucos.

Mas tens alguma estratégia para divulgar o projeto, tens alguma meta que procures alcançar?

Neste momento estou a terminar o site que estará pronto em breve. A par das edições, temos a parte de impressão para clientes, que é uma mais valia, porque algumas das maquinas que temos são de facto, raras. Não procuro propriamente estabelecer metas, porque quero continuar a editar coisas que goste. Gostava de editar mais autores de texto, aliás, qualquer autor em qualquer área pode sempre contactar-me com uma proposta de edição.

Catalogue Saisonee do poeta Derek Beaulieu

Onde é que encontraste as tuas maquinas?

A maior parte em feiras de velharias, mas também em antigos escritórios e gráficas. Por vezes também se encontra algo no on-line, mas podem ser muito pesadas e nem sempre são um bom negocio, até porque não se pode experimentar para atestar o estado. Recebi algumas doações de amigos que conhecem o meu interesse.

Imagino que tenhas muitas histórias relativas as tuas máquinas. Qual é que gostas mais e que nunca venderias e qual delas foi uma grande decepção e é ferro velho no estúdio?

Por sorte, nenhuma das que entraram no meu atelier foi por uma questão estética. Todas funcionam , mas não é garantido. Tenho encontrado várias em péssimo estado, que as pessoas pedem um dinheirão, sem saberem o real valor. Eu procuro essas maquinas para imprimir e de todas a que tem a historia mais curiosa foi a minha máquina da Adrema que pertenceu a um sindicato . Servia para enviarem a correspondência. Encontrei-a num edifício abandonado.


E o fotografo que imagino que continuas a ser onde está?

Devido à contingência actual, estou parado como muitas pessoas que foram privadas de poder exercer o seu trabalho. Talvez retomemos o ritmo paulatinamente num futuro próximo, assim espero.

Desenho André lemos

instagram.com/paperviewbooks