Crómica de António Barradas

Há uns tempos largos (ainda não éramos nós Zorros bocais) fizeram-me uma pergunta que me ficou a remexer com os esquilos roliços, aos quais chamo neurónios. “Se pudesses escolher uma personalidade, quem levarias para jantar?”. Confesso que este tipo de pergunta sempre me causou alguma urticária. Uma exigência de quem questiona em saber ali, naquele segundo, algo nem sequer equacionado num duche mais demorado. Surgem números, cores, cheiros, mas pessoas?! Personalidades?! Alguém? Deixei-me cair num marasmo pautado por “hmmmmms” intermináveis, que serviam de energia (sustentável, claro!) à minha demanda.

Surgiram-me escritores, cantores, jogadores de futebol, filósofos, cozinheiros, mas nenhum deles era a pessoa certa para degustar uma refeição com. Nem na tasca, com nódoas de vinho em toalhas de papel; nem em restaurantes cujo set de talheres é mais numeroso do que a minha conta. Nós somos portugueses, ora, comer é o verbo mais parecido com rezar para um ateu. Damos trincas nas gargalhadas, falamos de refeições passadas e vamo-nos lambuzando com histórias trocadas entre uma garfada e outra.

Algumas divagações depois, lá me surgiu um nome: Larry David. “Quem?”, foi a resposta do interlocutor. Após esta interjeição em formato de pergunta, veio outra: “Porquê?”. Nenhuma delas me satisfez, mas não lhe podia tirar assim o pão da boca (comida novamente!).

O motivo não é simples, mas reside no facto de existir uma relação quase simbiótica ao nível do humor. Alguns podem chamar-lhe admiração, não julgo, mas é mais no seguimento do: “Diz-me do que ris e rir-nos-emos juntos”. Não é assim que tudo começa? Seria possível partilharmos uma travessa de caracóis com alguém cujo interesse humorístico? Não.

Há algo no Larry David a fazer-me, constantemente, apontar para o ecrã e dizer “é isto mesmo! Penso exactamente da mesma forma! Como é que possível isto estar a acontecer e mais ninguém reparar? Que situação irritante! Faz todo o sentido, pois claro”. Na série biográfica “Curb Your Enthusiasm” (ou se preferirem a tradução exímia: “Acalma-te, Larry!”), a personagem principal, Mr. David, vai amontoando peripécias e visando situações trágico-cómicas do quotidiano. É uma padronização e escrutínio do comportamento humano e das reacções em cadeia geradas por acasos, aparentemente, esquecíveis.

Quer sejam pessoas que deixam cair coisas sem as apanharem, maus gestores de conversa em jantares de amigos ou pessoas que não ficam na fila para repetir em buffets. Uma panóplia de situações hilariantes e bem relacionáveis que nos são atiradas em catadupa e nos fazem criar uma relação quase sensorial com Larry. Um amor-ódio saudável, aliado a um azar cíclico da personagem principal, com o qual me identifico em vários por cento.

São abordadas situações peculiares pelas quais todos já passámos, expostas com um humor sagaz, irónico e mordaz. Já o havia eternizado em Seinfeld, sitcom na qual também se representou, e fá-lo há 20 anos em Curb Your Enthusiasm. São horas sem fim baseadas em pormenores hilariantes. Isto tudo sem perder a sua intransigência, desconforto crónico ou insatisfação diária. É aqui onde nos cruzamos.

Larry David é um génio do humor. Ri-se de menos, faz rir de mais e toca nas feridas todas até elas abrirem e as olharmos de frente. Faz falta este humor mais corrosivo, carregado do banal e corriqueiro. É preciso dar azo à genialidade, para fazer rir de forma tão simples e carregada de sentido.

Posto isto, parece-me claro como a água calcária a correr-nos canos: vou já marcar mesa no Solar dos Presuntos.

Texto de António Barradas par PARQ_72.pdf (parqmag.com)