MICKEY 17
texto de Lara Mather
O novo filme do realizador sul-coreano Bong Joon Ho, “Mickey 17”, é uma comédia trágica de ficção científica que retrata uma realidade talvez não tão distante.
Mickey, interpretado por Robert Pattinson, está infeliz com a sua vida, tem muitas dívidas na Terra e, por isso, decide embarcar na expedição espacial rumo a um planeta inabitado por humanos, liderada por um congressista fracassado Kenneth Marshall, interpretado por Mark Ruffalo.

De modo a poderem colonizar este novo mundo, cada pessoa candidata-se a uma função específica. Mickey escolhe ser um “Descartável”, assumindo assim o fardo de ser uma cobaia humana para testes, expondo-se a tarefas perigosas em nome da Humanidade. Sempre que morre, é literalmente impresso novamente, com as suas memórias restauradas a partir de uma unidade de armazenamento digital.
Mickey é o único “descartável” nesta expedição, e a única regra para quem assume essa função, é que nunca devem ser criados clones, Mickey tem que morrer para ser impresso de novo. No entanto, após Mickey 17 demorar a voltar de uma tarefa no novo lar, os cientistas imprimem o 18. Quando o 17 regressa à nave, é confrontado com o seu clone, que aparenta ter um temperamento difícil e uma personalidade agressiva e desafiadora.

Robert Pattinson consegue criar duas versões desta mesma personagem sem grandes esforços. Percebemos imediatamente qual é qual pela linguagem corporal, o olhar, até mesmo a postura. 17 é mais tímido, frágil, apaixonado por Nasha (Naomi Ackie), e vive para agradar os outros, enquanto que 18 é imprevisível, impulsivo e carismático.
Baseado no livro “Mickey 7” de Edward Ashton, Bong escolhe neste filme imprimi-lo mais vezes não por ser sádico, mas sim porque o número 18 é representativo da idade em que a sociedade considera que atingimos a maturidade. Ao longo do filme esse significado torna-se claro com o desenvolvimento da personagem principal.
É um coming of age bizarro e distópico mas que Bong Joon Ho torna-o mais “identificável” ao público do que talvez no livro. No filme, Mickey é um funcionário público, enquanto no livro era um historiador.

A banda sonora original, composta por Jung Jaeil, invoca solidão e melancolia através da sonoridade de instrumentos clássicos de uma forma simples e crua. Cada nota parece carregar o peso da experiência humana, envolvendo o espectador numa atmosfera introspectiva e quase dolorosa. Essa simplicidade nas escolhas musicais é o que torna a música tão poderosa, capaz de amplificar a tensão e a vulnerabilidade que permeiam o filme.
Interessante também realçar que, mesmo sendo um filme de ficção científica, não vemos aquela estética estéril de hospital a que estamos acostumados a ver neste género. Pelo contrário, a estética é industrial, com um possível “cheiro a chulé” como descrito pelo realizador numa entrevista. As cores são escuras e dessaturadas, os uniformes de todos são em vários tons de cinzento com exceção da personagem de Toni Colette (Ylfa Marshall) e Mark Ruffalo (Kenneth Marshall) propositadamente. O ditador e a sua mulher vestem cores em tons de rosa e vermelho e o seu quarto na nave é adornado e luxuoso.
Algo curioso sobre Bong é que ele gosta de entregar os storyboards completos ao elenco nas filmagens, o que não é prática comum. Isso acontece porque ele é super específico no blocking e no framing, já tem o filme todo na cabeça. Mas, ao mesmo tempo, dá abertura para os atores fazerem sugestões ou improvisarem sem comprometer os planos da câmara. Ele sabe exatamente o que quer, mas também deixa espaço para a magia acontecer.

O realizador disse ter-se inspirado em vários políticos do passado para a personagem de Mark mas que facilmente poderíamos lembrar-nos de algum político atual, uma vez que a História repete-se. É um vilão que vê tudo ao nível da superfície e, ao longo do filme, vemos que está sempre de microfone na mão, sempre a forçar os outros a ouvirem as suas ideias ridículas, representando toda a sátira política do filme.
“Mickey 17” é um filme cheio de paradoxos e no seu centro está o desentendimento entre humanos e criaturas assim como reflexões sobre classes sociais e esta ideia de quem é ou não de valor.
Sem querer revelar muito sobre o filme, porque vale mesmo a pena ser visto, Bong mostra-nos mais uma vez, as falhas da nossa sociedade, como já tinha feito em filmes anteriores da sua carreira. Tanto em “Snowpiercer” como em “Okja” vemos uma figura de poder, ditatorial, e em “Okja” vemos também a crueldade dos seres humanos com os animais.
Neste filme foram usados os mesmos designers de efeitos especiais para criar as criaturas que trabalharam nos filmes “The Host” e “Okja” do realizador.
Como já referido anteriormente, o filme aborda também classicismo, um tema familiar na filmografia de Bong como, por exemplo, no filme “Parasite”.
Existe uma clara hierarquia, Mickey está no nível mais baixo da pirâmide e, por causa disso, tratam-no muito mal. O realizador brinca com uma série de perguntas: Porque é que até mesmo nos dias de hoje algumas pessoas são avaliadas como sendo de maior ou menor valor em relação a outras? Quem é que definiu isso? E, porque é que como sociedade nós simplesmente aceitamos isso sem contestar?
Naomi Ackie, que interpreta Nasha, é a única personagem no filme que luta por aquilo em que acredita. Defende as criaturas e luta por Mickey, por quem está apaixonada. É uma personagem corajosa, leal, com um bom coração, incapaz de ficar calada ao presenciar injustiças e que acaba por fazer a diferença.
A dinâmica entre Nasha e Mickey é amorosa no meio de tanta desumanidade, é perceptível o carinho e luxúria que têm um pelo outro.
Além das personagens principais, Patsy Ferran, que interpreta Dorothy, traz em semelhança a Nasha, um contraste de ética e humanidade, qualidades que os seus colegas cientistas não têm em relação a Mickey e às criaturas. Uma atuação surpreendente.
Steve Yeun, que interpreta Timo, é uma personagem que faz de tudo para sobreviver, mesmo que isso signifique sacrificar o único amigo que tem na nave, Mickey. Não é necessariamente um vilão mas é muito egoísta, uma personagem talvez menos óbvia de vermos num filme de ficção científica.
O filme foi todo filmado nos Warner Bros Studios em em Leavesden, Hertfordshire, Inglaterra.
Para criar a ilusão de neve foram usadas toneladas de sal cobrindo o estúdio todo.
A diretora de arte, Fiona Crombie, quis usar elementos que fossem da Terra apesar do cenário futurístico, conseguindo um equilíbrio entre ambos.
Inspirou-se na estética de navios de carga e submarinos para a nave espacial, dando-lhe um ar mais decadente.
Bong Joon Ho é um realizador sensível e consciente que reflete sobre os problemas do mundo nos seus filmes. Nunca falha em deixar o público emocionado e a refletir e absolutamente incrédulo com a sua originalidade e mestria.
Neste momento, já está a trabalhar no seu próximo projeto: um filme de animação CGI com criaturas, que será, certamente, extraordinário.
