Quase

Texto de Carla Carbone

A exposição “Quase”, de Marco Sousa Santos, que decorreu em julho, na Galeria Bessa Pereira, apresenta toda uma cartografia de objetos, antes mesmo de serem objeto final. A história, por detrás dos objetos – expressa em modelos, em protótipos – acrescenta valor e sentidos, e abre-nos uma janela para os gestos, quase impercetíveis, que têm lugar nesses objetos hibridizados, de coisas intermédias. Nos vários modelos patentes na exposição de Marco Sousa Santos podem ver-se as nuances em cada linha, em cada contorno, fixado das formas.

Foi talvez no último quarto do século XX, que se começou a dar importância, em contextos expositivos e museológicos, ao discorrer histórico do processo até o objeto fixar os seus contornos definitivos. Parece que, em 1980, os primeiros protótipos e modelos viram a luz do dia em espaços expositivos, como no Departamento de Design Industrial Holandês, ou mais tarde, em 1998, no Museu Boijmans Van Beuningen de Roterdão. Este Museu permitiu que peças em estado intermédio pudessem ser vistas pelo grande público, nomeadamente na exposição “ The Origin of Things”.

Os modelos enriquecem todo um trabalho expositivo, por meio de uma intensão documental. Thimo te Duits, no seu livro “The Origin of Things”, ilustrou de forma magistral o mapeamento destes objetos, a sua cronologia formal e conceptual, com George Perec e o seu livro “La Vie, Mode d’Emploie”: Um apartamento em Paris é descrito pelo escritor como evidenciando objetos que parecem simular histórias dos seus habitantes e os relacionamentos estabelecidos entre eles. Como que em fragmentos, trata-se da reconstrução dos objetos, tendo como mote a mudança.

Ora, os objetos de Marco Sousa Santos registam esta mudança, levantam o véu das tensões que se estabelecem na sua evolução desses mesmos objetos, até ao resultado final. Vejamos o que o designer tem a dizer sobre a exposição.

1 – De “Quase”, fica a impressão de ter sido uma experiência pioneira em Portugal – Uma exposição dedicada ao processo, ao percurso da construção da peça até ela ser definitiva, até ela ser produto.

“Quase” é uma exposição sobre o meu percurso recente de experimentação em diferentes materiais. Entre vidro, madeira e metal, a exposição apresenta alguns dos resultados da exploração de cada um desses materias em ambiente workshop, ou seja, para cada material, uma abordagem de projeto e respetiva experimentação tecnológica que é apresentada sob forma de protótipos e modelos experimentais.

2- As peças que resultaram das várias etapas do projeto parecem conferir movimento, acrescentar uma narrativa, uma história ao objeto final. Considera que, por vezes, o produto final fecha, limita, a linguagem do processo, deixando para trás muitas outras possibilidades, muitos outros caminhos?

Em Design, o processo (materiais, tecnologia, desenho, criatividade, ensaio) está condicionado pelo objetivo funcional e de mercado a que o projeto se destina. Para que um projeto se transforme em produto, é efetivamente necessário “fechá-lo” e isso pode implicar concessões de vária ordem. Em “Quase”, propus-me mostrar, entre outras, peças que ficaram antes dessa “conclusão”, e nesse sentido sim, as peças em exposição representam um “movimento” projetual, uma dinâmica de ensaio e erro, e como tal uma narrativa significante.

3- Como surgiu esta vontade de contar a história dos objetos até eles serem produto final?

É um desejo natural de quem faz design. A necessidade de mostrar que os objetos não nascem por acaso, e que a sua existência não é aleatória nem fugaz.

4- O que acha que se escapa deste processo autoritário do perfeito mecanizado?

O futuro será feito da tensão entre esse perfeito mecanizado e o perfeito natural.

5- Tomando como exemplo uma tablete de chocolate: Muitas vezes, a fábrica, deixa sair uma “barra de chocolate” com defeito, uma peça com um risco ou fissura. Na verdade, o objeto parece servir na sua função básica, mas ainda assim é rejeitado pelo cliente, ou mesmo antes, não passa da linha de controlo de qualidade. Quer a máquina dizer-nos algo? Estaremos perante a ideia de que é preciso dar lugar aos acasos, aos imprevistos, para assim desviar o design da normalização formal, estética e conceptual?

O Design é uma metodologia indisciplinada, e os bons “atores” dessa prática sabem como transformar o erro em novidade, contrariando através da surpresa e da emoção, a normalidade do mercado e da máquina de vender.

6- Quando pensou em “Quase”, dirigia a exposição para um propósito pedagógico, como suporte para o ensino do design (sabendo que é docente, poderia estar a pensar nos seus alunos), ou antes um laboratório, em aberto, para daí surgirem outros caminhos (para o design), para a discussão do papel do design e seus contornos?

Na verdade, a exposição serviu para mostrar coisas que estão guardadas (não produtos), longe das pessoas, colegas ou alunos, e isso serve sempre para suscitar nas pessoas leituras diversas, sejam elas de discussão ou de aprendizagem em torno do processo do design.

7 – Quando penso em “Quase” (e esta é uma interpretação mais pessoal), vejo alguns objetos que se hibridizam, alguns intermédios que reivindicam uma identidade. Como a linguagem expositiva está associada quase sempre ao legado das artes, essas peças hibridas, em aberto, (à procura de forma e função), parecem situar-se na charneira da arte, do object trouvé, da escultura. Parecem instalação artística pura, de linguagem conceptual. Quer comentar? a) Que opinião tem da mestiçagem das disciplinas? b) Que diz dos designers que operam entre a arte e o design? c) Que procurou ao colocar esses objetos em diálogo com os outros todos?

O Design é uma disciplina transversal a todas as formas de representação plastic, estética, e técnica, e nesse sentido ele apropria-se delas e usa-as em seu proveito. Mas mais do que na Arte, ou na cultura material funcional, é na natureza e na sua inigualável riqueza plástica, estética e técnica, que o design melhor se reinventa. É importante não confundir Arte e Design, a não ser que coloquemos um urinol na parede de uma galeria de arte.

www.galeriabessapereira.com

texto de Carla Carbone para a PARQ/ out 2015 Parq47 by Parq Magazine – issuu