Intimidades em Fuga

Texto de Francisco Vaz Fernandes

Intimidades em Fuga é uma exposição que propõe como eixo central um conjunto de fotografias de Nan Goldin que compõem “The Ballad of Sexual Dependency”, um álbum de imagens que ganhou repercussão e hoje é uma referencia incontornável. A sua consagração aconteceu em 1985 quando a artista norte Americana é convidada a integrar a Whitney Biennal em Nova Iorque para mostrar essa série de imagens.

Nan Goldin, The Ballad of Sexual Dependency, fotografias, instalação no MAC/CCB

Até então, ninguém tinha ouvido falar de Nan Goldin que registava com a sua câmara, de forma despretensiosa, o seu mundo afetivo, onde surgiam amigos, jovens criativos que engrossavam o movimento underground de Nova Iorque, agora deserdados da Factory de Wharoll. Essa espécie de álbum de família alternativa tinha inicialmente sido conhecido como um slide show com cerca de 700 imagens acompanhado por uma banda sonora eclética que incluía Callas e Velvet Undergound. Foi apresentado em bares ou em espaços que Nan Goldin e os amigos frequentavam. Incluía imagens realizadas nos anos 70 mas estendendo-se até aos inícios dos anos 80 em passagens por Chicago, Berlim e Nova Iorque.

Nan Goldin, The Ballad of Sexual Dependency, fotografias, instalação no MAC/CCB

O grau de proximidade a que chegava aos sujeitos fotografados era impressionável, especialmente porque estes sujeitos estavam dispostos a relevar de forma tocante as suas intimidades e vulnerabilidades. Podia-se pensar num confessionário fotográfico onde a própria autora aparece em auto-retratos sem filtros que evocam sofrimento. Várias vezes se fotografou depois de ser vítima de abusos, não se inibindo de mostrar feridas resultantes de casos de violência doméstica. No geral, “The Ballad of Sexual Dependency” revela-nos uma década de imagens e quem o percorre, imagem a imagem consegue trilhar os percurso de alguns dos protagonistas, vê-los nos registos de felicidade mas também em registos de dor e mesmo morte, já que alguns deles foram vítimas do vírus da SIDA.

É precisamente este conjunto de imagens que podemos ver ao longo de uma parede de cor púrpura do MAC/CCB . Dada as características deste espaço expositivo em Lisboa foi possível formar uma linha de imagens que se perde de vista e que no seu percurso consegue encetar um diálogo com os restantes núcleos de obras expostas. Intitulada, Intimidades em Fuga, é uma exposição que procura explorar o sentido da intimidade numa época em que uma grande parte de nós parece estar bastante disponível para se revelar na sua intimidade e ao mesmo tempo nada parece ser íntimo.

Sharon Lockhart, Pine Flat Portrait Studio 2005 Col. Ellipse/Holma

A curadora Nuria Enguita, reúne peças a partir dos fundos do MAC/CCB que tem por base coleções formadas no início do milénio onde as questões em torno do sujeito e das formas de representação, assim como da construção das identidades e do género estavam muito presentes no discurso crítico e que trouxeram à ribalta muito dos artistas presentes nesta exposição que favorece o registo fotográfico. São estes discursos que agora parecem ecoar nas coleções Holma/Elipse e Berardo. Neste sentido, esta exposição também nos relembra a existência de peças fundamentais na arte contemporânea que estão em acervos públicos. As séries fotográficas de Sharon Lockhart ou Rineke Dijkstra presentes nessa exposição são dois bons exemplos. Naturalmente são peças de grande impacto dentro do conjunto expositivo presente no MAC/CCB

Sharon Lockhart, Pine Flat Portrait Studio 2005 Col. Ellipse/Holma

No caso de Sharon Lockhart, apresenta-se a série , Pine Flat Portrait de 2005 um conjunto fotográfico de grandes dimensões em que temos retratos frontais de crianças de uma pequena comunidade no interior da California onde a artista viveu durante três anos. É uma fotografia de carácter documental esvaziada do cliché do momento fotográfico. É tudo objetivo e serial em que os corpos infantis no centro da imagem ganham, algo escultórico, tornando-se presenças enigmáticas. Sharon Lockhart explora a opacidade destas imagens em que claramente temos uma superfície e um interior separados e são os observadores a ser chamados a preencher esses espaços vazios com as suas interpretações.

Rineke Dijkstra, Olivier, Quartier Vienot, Marseille, France, November 30, 2000 Col. Ellipse/Holma

O valor documental também aparece na série de fotográfica de Rineke Dijkstra. Desta vez temos várias fotografias de grande dimensão que contam com um único sujeito, um jovem francês Olivier Silva que estava alistado na Legião estrangeira. O que podemos ver é uma evolução marcada por diversas fardas que surgem a partir dos serviços que Olivier é chamado a fazer em diferentes países. Rineke Dijkstra procura explorar a expressão da transitoriedade, da transformação, da mudança e da evolução em situações de adaptação perante o desconhecido. São imagens de enorme complexidade psicológica onde se revela uma procura pelo registo da fragilidade da condição humana perante a mudança. É interessante equacionar este registo fotográfico com tradição documental da fotografia cientifica e etnográfica.

Rineke Dijkstra, Olivier, Quartier Vienot, Marseille, France, November 30, 2000 Col. Ellipse/Holma

É também pertinente encontrar relações com outras fotografias expostas que devem a sua existência à necessidade de documentar performances. É aqui que podemos situar os trabalhos exposto de Marina Abromovic ou de Helena Almeida, onde a foto surge inicialmente como suporte para registar um corpo o elemento comum e condutor desta exposição.

Rineke Dijkstra, Olivier, Quartier Vienot, Marseille, France, November 30, 2000 Col. Ellipse/Holma

Mas olhando esta exposição de outra perspetiva, encontramos igualmente uma fotografia que tem por base a tradição do foto-jornalismo, uma foto mais imediata que ganha contornos intimistas que observe muito do que se disse sobre Nan Goldin. Nesse sentido, Wolfgang Tillmans, artista de origem alemã, mas que fez grande parte da carreira em Londres é continuação de Nan Goldin numa sensibilidade queer masculina. Tocando a primeira fase do seu percurso, o conjunto das imagens expostas em Intimidades em Fuga, referem-se a uma vivencia hedonista do seu autor que testemunha a imposição da cultura gay londrina. Procura definir uma identidade de grupo, no qual o artista se insere, que importa ser visível e, como tal g,anha uma dimensão política. Há nesse sentido para Wolfgang Tillmans, há nas suas imagens uma verdade a gritar que é vivida como urgente e não se coaduna com formalismos estéticos. As imagens são impressas em jato de tinta, fixadas na parede com fita cola. São fragmentos de uma vida estilhaçada num mural, tal como posters num quarto de adolescente.

Helena Almeida, Na Experiência do Lugar II , 2004

A questão das identidades continua em foco com a obra de Felix Gonzalez Torres, artista cubano radicado em Nova Iorque, uma das figuras maiores dos anos 90 que vê o seu aclamado percurso interrompido pelo virus da SIDA quando ainda era jovem. O seu corpo queer está no centro das suas analises e os seus trabalhos são pensados de uma forma mais conceptual, por isso não tão imediata. Ele dá ao formalismo mimimal que se vivia na América um carater discursivo e natureza intimista. Obras aparentemente formais falam de vidas reais, nomeadamente da sua relação com o seu namorado. O conjunto de puzzles expostos em Intimidades em Fuga partem registos fotográficos do namorado e do seu cão assim como excertos de cartas e representam memórias, pontos chaves de uma vida que já se via ameaçada.

Cindy Sherman, Untitled Film Still, 1979 Col. Ellipse/Holma

Intimidades em Fuga é uma exposição que apesar do contexto histórico em que estas obras aparecem levanta questões que ainda hoje merecem ser pensadas até porque evoluíram, ganharam outros contornos que na viragem do século ainda não podíamos advinhar.

5 Instalação de conjunto fotográfic de Rineke Dijkstra no MAC/CCB

6 Helena Almeida, Na Experiência do Lugar II , 2004

7 Cindy Sherman, Untitled Film Still, 1979 Col. Ellipse/Holma

8 Paul Delvaux, Le Bain des Dames chez George Grard, 1947 . Col. Berardo