Crónica de Patrícia César Vincente
Ilustração Effe News
Há sempre alguém que vive para sempre. E a prova disso mesmo, é que nós seremos matrioskas. Vivemos uns dentro dos outros. Os outros que serão eternamente nossos.
O que a minha tia Lurdes sempre me ensinou, sem sequer saber que o estava a fazer:
Na década de noventa era eu muito pequenina, e no jardim Zoológico de Lisboa havia uma exposição de dinossauros. Em grande escala, daqueles que se moviam e faziam sons. Naquela altura, eu tinha livros de dinossauros e adorava o universo jurássico. Pedi muito para me levaram. Evidentemente que foi a minha tia comigo. Eu deveria ter 5 ou 6 anos, e a minha avó muito doente já mal podia andar, a minha tia andava sempre comigo.. Eram filas enormes de crianças com os pais. E lá estava eu na fila com a tia Lurdes. Ela comprava o bilhete para o jardim Zoológico assim como também pagava o bilhete da exposição. Fora gelados, que eu era criança que saía um bocado cara. Chegada à entrada daquilo era uma espécie de gruta, e mal nos aproximávamos, ouvíamos os sons assustadores dos “dinossauros”. Eu começava a agarrar-me à minha tia e chorava, tinha medo. Agarrava-me às calças dela e escondia-me atrás dela. Ao ponto de não querer entrar para ver os dinossauros. Dinheiro do bilhete perdido porque eu não estava capaz. Voltávamos para casa.
Durante a semana seguinte passava os dias a dizer-lhe que queria voltar à exposição, e a minha tia dizia: “Mas tu tens medo e não queres entrar. Nem passámos da porta!” E eu, teimosa e persuasiva lá a convencia de que no próximo fim-de-semana ia ser diferente. Mas acontecia o mesmo. Só há quarta ou quinta vez e sem exagero algum, é que entrei. Foram semanas a ir para o Zoo em jeito de romaria, custear bilhetes para eu chegar à entrada e começar a chorar. Um desses sábados, um funcionário do Zoo chamou a minha tia. Há vários sábados que assistia à mesma cena e naquele sábado deixou-nos entrar pela saída da tal gruta da exposição. Segundo ele, era menos assustador e ouviam-se os “dinossauros” à distância, e assim foi. Entrei, finalmente conseguimos. Vi, diverti-me e às tantas até já queria agarrar nos dinossauros, o que era proibido obviamente.
A minha tia fez-me as vontades, é verdade. Mas também um exemplo de que superamos os nossos medos. Foi com a paciência e amor dela que superei aquele medo infantil. Ao longo da minha vida adulta, olhei para trás e entendi o quanto momentos como aquele ajudaram a moldar a minha personalidade. Guardo a fotografia que nos tiraram à saída do Jardim Zoológico, eu de casaco encarnado e a Tia Lurdes sorridente.
Quase três décadas mais tarde, a tia Lurdes estava no hospital, entubada. Sem ela entender muito bem a sua situação pedia-me na hora da visita que lhe tirasse os tubos do nariz, ao que eu respondia “Não posso tia, não posso fazer isso”. A tia Lurdes respondeu-me a olhar fixamente para mim: “Filha, tu podes tudo. Tu consegues tudo, desde que queiras muito”. E a verdade é que ela não me disse aquilo apenas para me convencer a tirar os tubos da boca dela e do nariz, disse-o a olhar fixamente para mim em jeito de “nunca te esqueças disto”.
Felizmente ela saiu do hospital, a parte menos boa é que nunca mais voltou para casa. Ela nunca quis ir para um lar. Independente, a que acordava para ir ao pão, à missa, aonde queria. Falava pouco das faculdades e forças que lhe iam faltando, nunca se colocou na posição de vítima. Dizia que não tinha medo de nada, e que nunca casou porque “No meu tempo os homens mandavam nas mulheres e em mim ninguém manda”.Escolheu sempre a vida, mesmo quando a saúde foi ficando cada vez mais fraca. A caminho do lar que escolhi, sem ter tido grande alternativa. Chorei compulsivamente, nunca pensei algum dia ter de colocar a minha tia num lar. Mais tarde acalmei-me e pensei na nossa sobrevivência. Foi assim a vida toda. Ela assegurou a nossa e eu, a partir de certa altura tomei o lugar dela.
A caminho e já na ambulância menti-lhe: “Vais para uma clínica de recuperação”, ao que ela me respondeu: “Está bem, mas assegura-te ao menos que o lar para onde é bom” Passaram cinco anos desde essa viagem para o lar. Doeu muito nestes últimos anos assistir ao olhar cada vez mais vazio e distante. Aos poucos percebi que a minha tia nunca mais iria entender as voltas que a minha vida tinha dado, já não teria a noção das minhas conquistas. Isso dói, queria que ela soubesse, que tivesse orgulho. Chegar até aqui só se deveu a ela.
Mentíamos uma à outra, as vezes que fossem necessárias. Dizíamos que estávamos bem quando não estávamos. Não queríamos fazer sofrer uma à outra, a mentira nunca foi gratuita. A pergunta: “Precisas que te leve alguma coisa, tia?”, a resposta “Eu não preciso de nada, só me importa saber que estás bem”.Disfarcei sempre que as coisas não estavam assim tão bem: “Estou óptima tia, não te preocupes comigo.”Mas seria eu o seu amor maior. E para sempre ela será o meu. Para quem já leu o meu livro “Perpetuniana” sabe que acredito em vidas passadas, embora para a minha tia, a sua única crença fosse Deus. Ela cuidou dos seus pais até eles morrerem, e mais tarde cuidou de mim até ela morrer. Mesmo sem já sem conseguir andar, foi ela que sempre me fez correr o mundo. Por ela, porque queria que ela tivesse orgulho em mim e que sentisse que todo o seu esforço, amor e dedicação para me criar tivessem valido a pena, e acima de tudo queria assegurar que nada lhe faltava.
À porta da capela estava sozinha para aquilo a que a funerária chama de “receber o corpo”.
A capela vazia e lá ficámos as duas. Afinal sempre fomos só nós as duas. Tia, deste-me a tua vida, e no fim só poderia ser eu a receber o corpo em troca da eterna saudade.
Tia-avó, irmã da minha avó. Solteira, alegre, refilona. Mãe. A melhor protectora, cuidadora. Amiga. Deu-me tudo o que tinha e tudo o que conseguiu ser. Companheira. Mesmo que não entendesse, o amor dela era maior do que tudo. Estando ao meu lado em todas as minhas decisões.
E o amor salvou-nos. Cuidámos o melhor que soubémos, mas a mim sabe-me a pouco.
Tudo o que fizesse por ti ainda me soa a falta. Desde a pandemia que passei a dizer-te em todas as visitas e em todos os telefonemas “Obrigada por tudo o que fizeste por mim, obrigada titita.. Amo-te” E das últimas vezes respondias: “Obrigada filha, Deus Nosso Senhor te pague pelo que tens feito por mim”. Passou a haver uma troca de obrigados, como se soubéssemos que este fim na terra seria inevitável e poderia estar próximo.
Caí no chão no momento em que recebi o telefonema, foi como se tivessem arrancado a melhor parte do meu ser.
Se há amores que são eternos, o nosso será um deles com toda a certeza.
Tia Lurdes, dizias neste último ano que aquilo que mais querias era apanharmos as duas o autocarro e voltarmos juntas para casa. Talvez agora isto seja possível, no mesmo autocarro sentadas ao lado uma da outra em mundos paralelos. Dos que não se tocam, mas sentem.
Dos que morrem para renarcer e daqueles que têm de aprender a renascer depois de um grande amor morrer.
Dedicado à minha Titita
Maria de Lurdes Cezar
(1935-2022)
Crónica de Patrícia César Vicente para PARQ_75.pdf (parqmag.com)