Texto de Manuela Marques @ma_da_faca

“O Palácio” é um armazém de tralha, física e emocional, que necessitamos – nós, pessoas – para existir e habitar no mundo, ao longo da porção de tempo arrendada para tão efémera estadia. Este Palácio resulta, abundantemente, de um processo colaborativo, fazendo jus à dinâmica que garante a existência de todas as formas de vida, quer sejam orgânicas ou inorgânicas.

fotografia de Vera Marmelo

Lígia Soares e Paula Diogo, em cumplicidade com Crista Alfaiate e Diogo Alvim, propõem uma reflexão complexa à volta do conceito de «propriedade», através de um espetáculo desconcertante e imprevisível, que faz a audiência submergir no universo dos objetos quotidianos – um acervo de bens materiais, entretanto aposentados mas indispensáveis à subsistência da Humanidade.

“O Palácio” é um objeto artístico composto por objetos, inúteis e obsoletos, dos outros que – após uma angariação pública –, se amontoaram, ordenadamente, no palco do TBA (Teatro do Bairro Alto) ganhando uma dimensão cenográfica, pela sua recusa, para evitar o desperdício que seria conceber uma nova cenografia de raiz – algo deliberado e alinhado com o propósito do projeto –, dado ser, por norma, de carácter temporário e pouco, ou nada, reutilizável.

Colchões, estrados, mesas de jantar, mesinhas de cabeceira, candeeiros, canecas, copos, talheres, pratos, molduras, sofás, cadeiras, bancos, almofadas, frigoríficos, micro-ondas, bibelots, livros, sapatos, cobertores, skates, estantes, armários e caixas de cartão, com demais objetos… povoam o espaço. Artefactos, como estes, definem a nossa cultura material e materializam um pensamento sobre o Direito das Coisas (1) – onde se enquadra o sentimento de «posse» –, que advém de um comportamento tipicamente humano: Ter para Ser.

Possuir pressupõe o ato de adquisição, de algo, para consumo ou usufruto, havendo ou não uma necessidade primária, esta conduta é intrínseca à natureza Humana. Os homens quanto mais absortos numa sociedade consumista, cujo o desenvolvimento industrial e capitalista ascende, tendem a colecionar e a consumir invariavelmente, em quantidade e a novidade, acumulando objetos, móveis e imóveis. Conseguiremos reequacionar a vida, diária, subtraindo o supérfluo do que é, deveras, imprescindível? Será imaginável um cenário de total despojamento dos bens
materiais?

Seja como for, e segundo o provérbio “a necessidade aguça o engenho”, temos de concordar que a cognição do Ser Humano espoleta e progride pela sua relação com os objetos, uma vez que agilizam a nossa sobrevivência, facto que remonta ao início da evolução da espécie. A permanente necessidade do recurso a objetos narra a história da Humanidade e sustenta, também, a construção de uma identidade cultural. Esta circunstância em que o Homem precisa de solucionar, com sucesso, um problema, estimula o seu crescimento, pela ação do design (pensar-desenhar-conceber a forma-função das coisas), ou seja, a invenção e o aperfeiçoamento da tecnologia ditam o progresso – com os seus prós e contras.

Durante esta expedição, ao Palácio, são verbalmente debatidas, pelas intérpretes, várias anotações- dúvidas, acerca do nosso estreito vínculo a entidades inanimadas, destacando-se a ideia de longevidade das coisas-objetos, tudo o que criamos e vamos amealhando não desaparece, perdura. Por ironia, só nós desaparecemos, as coisas ficam como legado e/ou vestígio do nosso genus vivendi em determinada época.

Mesmo no caos, há beleza e a peça “O Palácio” é um formidável exemplo porque, por entre uma confusão de haveres alheios, abre lugar e recebe sem diferenciar vivalma. Sendo de forte cariz sensorial revela-se como uma experiência possível de ser percepcionada, vivida, por qualquer pessoa que, independentemente da sua condição, tanto no escuro como no silêncio a pode habitar.

1 é um ramo do Direito que prevê e trata, juridicamente, o exercício dos direitos de Propriedade e de Posse sobre os bens (corpóreos e incorpóreos). Consultar: DE CARVALHO, Orlando; “Direito das Coisas”; GESTLEGAL; 2021

«O PALÁCIO», de 07 a 11 Setembro, no TBA (Lisboa) | Conceção e Direção PAULA DIOGO e LÍGIA SOARES | Interpretação PAULA DIOGO, LÍGIA SOARES e CRISTA ALFAIATE | Música e Sonoplastia DIOGO ALVIM | Desenho de Luz RUI MONTEIRO | Assistência Desenho de Luz TERESA ANTUNES | Cenografia FERNANDO RIBEIRO e SAULO SANTOS | Pesquisa jurídica e Acompanhamento ONGD ANDRÉ STUDER | Direção de produção DANIELA RIBEIRO | Produção MÁ-CRIAÇÃO | Fotografia VERA MARMELO