O admirável estranho mundo

Encaixados num rotulo possível de banda Minimal Wave, o duo Boy Harsher consolida, no seu segundo disco de originais Careful, o trilho iniciado com o seu álbum de estreia Yr Body is Nothing. A atmosfera densa e claustrofóbica continua a espelhar o seu mundo apocalítico, tecnológico, futurista graças às suas referências mais obscuras da New Wave.

Embebidos de uma estética sonora muito próxima do cineasta John Carpenter, a banda introduz-nos o mote da sua mais recente viagem com “keep Driving”, abrindo-nos as portas para as aventuras do seu novo álbum. A intensidade intimista da vocalização de Jae Matthews, cria um espetro crucial para este novo ciclo de canções.

A sua música evoca um turbilhão de emoções que vão desde a raiva até à tristeza, passando por assedio sexual. No meio de tudo isto, há a constante urgência, ou apelo para a dança. Mas o mais curioso é que a banda consegue pegar neste caldeirão e misturar tudo de uma só vez.

Aliada aos poderosos beats e repetição dos sintetizadores alfa numéricos, as vocalizações etéreas, chegando até a ser fantasmagóricas, dão uma dimensão gótica aos elementos sonoros com forte inspiração Synth-pop, como é o caso de “Face de Fire”. Não é de estranhar, portanto, que se compare aos temas mais obscuros dos Depeche Mode ou dos New Order.

Bandas como Front 242 e os alemães And One, são a mais provável influência para “Fate”, onde o Techo com contornos mais industrial se faz sentir. As orquestrações também estão lá e, aliadas aos efeitos sonoros criados pelos teclados, encorpam o tema, transportando-nos para mais um poderoso momento sensorial, que povoa o nosso imaginário cinematográfico mais obscuro.

O recurso aos sintetizadores Bounce, criam em “L.A.” aquela sensação irresistível de que chegámos a uma festa Rave Gótica, onde Adamski poderia estar a tocar com os Information Society. Se há consistência neste disco deve-se sobretudo à densidade da vocalização, criando a ilusão de que a nossa mente poderá ficar simbioticamente ligada à música.

A intimidade orgânica foi substituída por uma intimidade glaciar tecnológica, mas mais entranhante com “Come Closer”, como se fosse inevitável fugir ao chamamento telepático da banda para uma comunhão de sentidos mais sincronizada entre a banda e o público.

Num ambiente mais eletropop obscuro, o tema “That Look you gave (Jerry)” revisita o experimentalismo de bandas como os italianos Charlie nos idos anos 80, onde ainda assim a melodia é possível. No mesmo alinhamento de frequência, “Tears” criando a possibilidade de podermos transportar fisicamente, para um mundo virtual, as nossas emoções, onde o homem tecnológico é muito mais orgânico que a relação homem máquina, anunciado precisamente nos anos 80. Olá Cronenberg, novamente!

Provavelmente o momento mais luminoso do disco acontece com o tema “Lost”, onde os sintetizadores menos soturnos criam a sensação de leveza, podendo inclusive apontar para um dos momentos mais próximos da Pop.

Os temas quase instrumentais como “Crush” e “Careful” – o tema que encerra o álbum, poderiam figurar numa banda sonora de filmes como Blade Runner ou The Thing, dada a sua extraordinária complexidade sonora. O nosso imaginário, mais uma vez, evoca atmosferas sónicas bucólicas, despidas de qualquer tipo de humanidade e, de certa, forma aterradoras.

Apesar de tudo, a obscuridade de Careful, embora claustrofóbica, atrai-nos para uma rendição ao estranho mundo de Boy Harsher. Existe como que uma poderosa força atrativa para a inevitabilidade da agregação dos elementos, onde nós, por uma estranha identificação, cedemos para lhes pertencer. Não podemos fugir, nem ignorar o seu chamamento. Ao invés, aceitamos o convite da banda para a integração total, com bom grado e sem reservas.

Texto de Carlos Alberto Oliveira, para Parq; Edição de Março 2019