O bilhete dourado para viajar sem sair do sítio

Depression Cherry

Texto de António Barradas

Não existiu verbo mais em voga nos últimos tempos do que: viajar. Vivemos um período crítico e dá-nos a sensação de não sairmos do mesmo sítio. Fecham-se fronteiras, exigem-se testes, encarecem-se meios de transporte e o medo toma conta de nós. Ansiamos por uma viagem, a qualquer lado, só desejamos afastar-nos do bicho-papão do desconhecimento, tantas vezes misturado com a solidão. Não existe pior cocktail, neste bar onde pululam inseguranças. Depositamos a nossa crença, mais ou menos apurada, num qualquer pozinho com réstias de magia, a oferecer-nos aquela mão nas costas para sairmos daqui. Seja isso onde for. Falta-nos um botão de “ejectar” para flutuarmos algures acima da realidade.

Na altura, quase sempre inóspita, em que a ansiedade faz das suas e me troca os b’s, pelos v’s e a sensatez pela desconfiança, entra em campo o meu bilhete dourado, a dar-me a hipótese de me transportar para lugar algum ou nenhum lugar, como me for aprazível. Chama-se Depression Cherry, o quinto álbum dos Beach House, onde durante 44:45 (por um segundo a mais não se torna obra do destino) me posso aconchegar em qualquer foguetão, máquina do tempo, canoa ou trator agrícola e deixar-me ser. Sem muralhas, nem ameias para qualquer fim não anunciado. É uma terapia que transcende a audição e se fixa no sensorial.

Sejam quantas forem as vezes nas quais vou colocar os phones, relaxar o pescoço e colocar a placa do “volto já” nos olhos, a travessia muda sempre. É uma imersão do tamanho de um iceberg a partir-se em slow motion quando me deparo com Levitation. Percorro ruas felizes de dedos roídos e de cabelo sem volta. São recordações a levitarem-me ao passo de um caracol surpreendido pelo sol. Passeio-me em pés de veludo, para não assustar a serenidade ali ao virar da esquina. Hoje são ruas, amanhã estou no mesmo acorde numa escala diferente. Já viajei para Este e fiquei por lá. Tudo se suaviza com Sparks e a sua vibe aterradoramente triste, onde, por curiosidade, só me escorrem pingos de felicidade. É o condão da música: reinventa-se aos ouvidos de quem a sente. A viagem prossegue com Space Song e o foguetão partiu. Não para o espaço, mas para um finito espaço de coisas serenas. Toca e toca e toca. No fundo, toca-me.

Não há um Pantagruel a fixar quantidades dos nossos sentimentos quando a música nos eleva. Trocamos os rés pelos mis e não seguimos a receita certa para o timbre singelo e passageiro de Victoria Legrand a sussurrar-nos ao ouvido. Queremos polvilhar com dor, peneirar o desejo e colocar q.b de ilusão em todo e qualquer travessia feita na altura de entrar um falsete. Os pêlos arrepiam-se e sabemos estar seguros. É assim com PPP, Beyond Love ou Bluebird. O puzzle completa-se sem lhe tocarmos, estando tudo tão intricado como melódico.

Há vários álbuns para as mais determinadas fases da vida. Existem músicas a escorrer com o vento, outras a ajudar na tempestade. Vêem-se as imperfeições em cantores, detetam-se linhas descosidas em concertos, mas não deixemos ninguém dizer-nos o que sentir quando nos palpitam as veias e nos aproximam os horizontes.

Texto de António Barradas para Parq #70, Junho 2021 PARQ_70.pdf (parqmag.com)