Behind the Green Door
Num antigo Wc de Lisboa, Barahona Possolo expõe um conjunto de cinco pinturas de pequenas dimensões que remetem para cenas fetichistas homo-eróticas. O artista encontrou nesse espaço exíguo, um conhecido local de encontros sexuais masculinos, várias vezes alvo de rusgas policiais durante a ditadura do Estado Novo. O local perfeito para evocar etapas vencidas que permitem que esta exposição se realize. Ainda assim, um certo secretismo em torno deste projeto remete-nos para repressão que persiste na sociedade contra a natureza dessas imagens de carácter sexual explícito. Ou seja, esta exposição traz a força de imagens que se produzem pela forma da liberdade de existir. Daí que “Behind the Green Door”, título da exposição que cita um famoso filme pornográfico dos anos 1970, nas suas representações realistas dentro de uma certa tradição renascentista. Mais que chocar procure ser libertador de preconceitos
1 – Expor num antigo wc público é de certa forma bizarro. De que forma o espaço condicionou a pintura exposta, ou se foi o inverso, o desejo de pegar nessa temática homo-erótica fez com que encontrasse o local?
BP: Este espaço foi miraculosamente encontrado depois das pinturas terem começado a ser feitas. O carácter “transgressor” do tema colocava, à priori, um problema quanto à forma da apresentação, que parecia muito difícil de resolver. Ao surgir esta hipótese, esse “problema” tornou-se numa “vantagem” porque podia ser expandido e contextualizado de uma forma, neste caso, ideal do ponto de vista sociológico.
2 – Que referências trouxe para as suas pinturas?
BP: O intuito inicial era o de revelar a presença do “Sagrado” num território tradicionalmente demonizado; tão demonizado que tudo nele era relegado para a ilegalidade, o silêncio e a vergonha. Procurei afrontar os preconceitos que justificaram tantas formas de violência, de que temos memória bem fresca com o que se passou no Estado Novo. Esta exposição deveria ter sido inaugurada no passado 25 de Abril mas a pandemia não o permitiu. Lembremo-nos que mesmo durante a revolução Galvão de Melo disse que o 25/4 não tinha sido feito para as p*tas e p*nel*iros. Muito mudou, mas muito permaneceu. Para tentar demonstrar essa “presença do Sagrado” fui buscar a simbólica dos 5 elementos alquímicos (largamente difundidos na iconografia artística) como essências tutelares, cuja chancela obrigaria, pelo menos, a repensar o preconceito. Os símbolos ocupam o centro gráfico das pinturas e são realçados a ouro, exatamente na mesma lógica.
3 – Quais as referências que se juntam ao local de exposição?
BP: O local reforça magistralmente a questão da violência histórica sobre as manifestações da sexualidade “não aceites”. Obviamente que não pretendo trazer a obscenidade para as práticas sociais públicas quotidianas, mas recordar a normalidade de tantas formas variadas da sexualidade que são hipocritamente ocultadas ou mesmo criminalizadas. O Estado Novo, de que muitos já não se lembram (ou dizem não se lembrar) foi um inimigo feroz da Individualidade e do Livre Pensamento; muitas pessoas diferentes da miserável “norma” foram torturadas e mortas, se não pelo Estado, foram-no pelos agressores impunes que tomaram nas suas mãos essa “Jihad” fascista. Agora, são as formas de negacionismo que podem permitir que se repitam atrocidades monstruosas. Essas forças não morrem: infelizmente, também fazem parte da natureza humana. A Liberdade é algo por que se tem que lutar diariamente. Se começamos a abdicar dela, alguém imediatamente se vai aproveitar disso.
4- Em que medida a memória queer da sua cidade importa ser relembrada. Para além desta acção em que outras se encontrou envolvido?
BP: A memória queer de Lisboa deve ser mesmo investigada, para poder ser preservada. Só isso constituirá profilaxia social para evitar a repressão futura. O que não está à vista para muitos, não existe. Exatamente devido às décadas de fascismo (que obviamente dá continuidade a milénios de dogmas), essas histórias e marcas estão, na minha opinião, desvanecidas e há muita investigação para fazer. Temos a memória curta (leia-se cobarde). Neste âmbito já fiz algumas intervenções, como seja a exposição All You Can Eat (em 2013), ou a participação numa mega-instalação “Back to the closet” no QueerLisboa em 2003.
5– Muitos passos se deram para a cultura queer ter alguma visibilidade. Antevê que em Portugal a sua exposição possa colocar problemas?
BP: Teremos que aguardar e ver o que se vai, efetivamente, passar. Não quero subestimar o civismo e a consciência social do público mas creio que possa causar grave incómodo a alguns.
6– Acredita que há uma Arte Queer, como às vezes se procura categorizar? Considera-se englobado?
BP: Sem conseguir definir exactamente as fronteiras da Arte Queer, acredito que sim, existe. As fronteiras são flutuantes porque o próprio conceito de Queer implica que há sempre alguém que, da forma mais “estranha” e inusitada vem trazer a sua marca e ampliar o espectro, revelando, por reação, espartilhos normativos que passavam despercebidos. Sinto-me englobado desde o primeiro momento. Quando comecei a pintar escolhi um género figurativo simbólico de feição naturalista, que era completamente rejeitado pela crítica e pelo mainstream que se acha “vanguarda”. Ainda é, mas tentam disfarçar de vez em quando, para não serem acusados de autoritarismo.
7-Como foi o processo de construção das suas pinturas?
BP: Nas intenções deste trabalho estava incluída a questão da “naturalidade”, isto é, a forma única e específica que cada um de nós tem. Todos somos diferentes na nossa unicidade mas somos todos iguais, como legítimas “aventuras individuais” de Humanidade. Por isto, a forma própria de cada um deveria estar perfeitamente presente. Estas pessoas existem; cada uma delas tem um valor inestimável e sem cada uma delas teria sido impossível realizar estas pinturas. Aliás, eu acredito que cada um de nós seja indispensável para completar a obra de arte colossal que não conseguimos apreender, porque padecemos de uma escala ínfima. A questão da Veracidade (quando a pintura é sempre ilusão) explica a escolha dos instantâneos, em que o flash da câmara lança sombras cruas que recortam as figuras contra o fundo. E nisto somos surpreendidos como espectadores.
8-Em que medida a cultura clássica é a referência da sua pintura. Que outras?
BP: A cultura clássica que é largamente a matriz da nossa civilização ocidental (apesar do Cristianismo), é o eterno fornecedor de conteúdos e formas. Sou completamente rendido a este universo, que é completado por um interesse muito forte pela Antiguidade Egípcia (presente no Classicismo Mediterrânico mas de forma descaracterizada), e de visitas a ideias e temas orientais, especialmente do Budismo.
9-Sei que entretanto este antigo WC está em processo de requalificação, que destino futuro está programado para o espaço?
BP: A Freguesia de Santo António pretende que seja um novo espaço expositivo. Embora pequeno em área, a sua localização é privilegiada. Espero que seja procurado por artistas de todos os géneros e idades.
Duque de Loulé, junto ao Hotel D Carlos Park, Lisboa
até 17 de Outubro (encerra domingos e 2as).
Marcações aqui: https://greendoorbarahona.eventbrite.com
Entrada reservada a maiores de 18 anos; contém imagens eventualmente chocantes