De coração aberto

Numa sociedade cada vez mais desligada de si mesma, Aldous Harding celebra a profundidade dos sentimentos e a conexão consigo própria no extraordinário terceiro disco Designer. Contando mais uma vez com a produção de John Parrish, a artista Neozelandesa lima as arestas das sonoridades exploradas nos discos anteriores e acrescenta sedutores apontamentos nos detalhes. Certamente graças a um orçamento superior, afasta-se ainda mais dos rótulos de artista gótica com fundações no Folk alternativo. Se o espectro de Kate Bush pairava nas suas canções, a sua graciosa capacidade vocal não se esgota neste disco e varia entre oitavas e contratempos, aproximando-se a tons vocais de Nico. A completa capacidade vocal dita a sua grandiosidade e diversidade, permitindo habitar canções como “Damm”, onde o piano atravessa quase monocordicamente a canção, terminando com uma deliciosa secção de saxofones. É extraordinária a sua capacidade de imprimir tamanha intensidade e emoções nas vocalizações. Cada canção é um pedaço de si e os arranjos musicais cimentam uma coerência, que não é assim tão comum encontrar nos dias de hoje. Se para trás havia uma mancha nublosa, agora paira uma leveza e um brilho acolhedor.

Gravado em 15 dias em Bristol, Designer foi talhado de coração aberto. “Heaven is empty” expressa um minimalismo de cordas tão doce quanto acolhedor. Enquanto que “Pilot” despoja qualquer espaço assessório, onde piano e voz ditam um ritmo cinematográfico. Simples, mas incisivo. A faixa de abertura do disco “Fixture Picture” balança entre os tons pastorais e a dreamy pop, com pinceladas nas linhas de baixo a que os Air nos habituaram. A evolução é lenta, quase imperceptível, pedindo uma atenção especial, focada num tempo e espaço, forçando-nos simplesmente a desfrutar do momento, sem qualquer tipo de distração. Designer mostra Aldous Harding mais confiante, segura e madura enquanto artista. O seu coração aberto apela memorias além das fonteiras da música. Constrói atmosferas que se assemelham a um romance de Albert Camus, imagens que nos remontam para a tela de Terrence Malick. Desarmante pela fragilidade, agarra-nos pela capacidade de criar espaços para nos apropriamos das suas emoções e as ilustrarmos à medida da imaginação.

Texto de Carlos Alberto Oliveira, para a Parq de Maio de 2019