Para um fado diferente
O produtor que lançou Rosalía na senda do sucesso e uma voz formada no Clube de fado, mais um monte de sintetizadores resulta num dos mais incríveis registos do ano a que a imprensa internacional já se rendeu.
No próximo dia 23 de Julho vai assinalar-se o centenário do nascimento de Amália Rodrigues, data redonda e simbólica que há-de, certamente, inspirar inúmeras homenagens. E será fácil prever que o peso da efeméride vai funcionar como um vórtice que arrastará tudo e todos para esse passado glorioso que a nossa maior Diva representa. Mas Amália foi sempre futuro, foi sempre uma força de renovação, uma artista que nunca se esquivou à novidade, ao risco. Em 2020, celebrar Amália olhando apenas para o passado será não a compreender em todas as suas múltiplas dimensões. Aplauda-se, portanto, Lina_ Raül Refree, álbum que comprova que é de facto a olhar em frente que se presta a melhor das vénias.
O produtor e músico catalão Raül Refree explicou os cuidados que teve com a voz de Lina: “Tive sempre uma fraqueza pessoal pela voz. Creio que apesar de existirem muitos músicos e instrumentistas que se queixam da importância que se dá à voz na música, é uma realidade que não podes negar. A voz é algo que todos temos, quase toda a gente se atreve a cantar, mesmo que não cante bem, e eu acho que o timbre é o que mais nos emociona internamente. Isto foi uma coisa que sempre tive clara desde que me dedico à música e que é: se há voz, é importante tratá-la e encontrar a melhor maneira de emocionar o máximo possível, porque esse será o veículo para fazê-lo. Não sei explicar, e perguntam-me muitas vezes nas entrevistas, quais são os mecanismos com que trabalho a voz. Há alguns que obviamente posso contar, como a eleição do microfone ou o espaço onde gravo as vozes. Depois há outras que são mais difíceis de explicar, que surgem no momento em que estou sentado no estúdio e tenho a Lina a cantar o fado. É difícil explicar porque é uma reacção muito epidérmica que tenho. Não se explica”. Neste “não se explica”, o espanhol revela, afinal de contas, a procura de uma dimensão que ultrapassa as normas técnicas, que extravasa aquilo até que as máquinas são capazes de garantir. E isso sente-se logo nos primeiros segundos de “Medo” (tema que Amália gravou originalmente em 1966), quando Lina começa, sozinha, por cantar “quem dorme à noite comigo” antes de uma camada de tremores analógicos a envolver, como uma densa névoa, deixando imediatamente claro que este vai ser um disco diferente. E em que a voz surge ao centro, em toda a sua nobre e dramática dimensão, como a figura que no teatro se posiciona no palco, ladeada por espartano cenário, recortada apenas pela luz para nos declamar a sua verdade.
Lina chega aqui vinda do Clube de Fado, em Alfama, habituada a fazer-se ouvir num espaço de solenes rituais, sem microfones, mas sempre com o peso da história a sentir-se à volta, como bem sabe quem já por lá possa ter-se maravilhado nalgumas noites. E Raül Refree é produtor de créditos firmados, com um currículo vasto e variado que se estende de Lee Ranaldo (com quem acaba de editar o novíssimo Names of North End Women) a Rosalìa (assinou a produção de Los Ángeles, álbum de estreia da agora superestrela latina, lançado em 2017). Juntos, Raül e Lina assinam aqui um prodígio, um álbum em que o fado amaliano é ponto de partida para um estudo fundo sobre a emoção e o poder da voz, sem que se sinta qualquer tentação de mimetismo ou submissão à tradição. E, portanto, como tantas vezes acontece com grandes discos, este Lina_ Raül Refree, é também um paradoxo, porque ao abraçar um reportório com peso histórico não deixa de o entender como ponto de partida e não de chegada, como sugestão e não como dogma, como matéria para construção e não como monumento intocável.
E é isso. Simplicidade, ausência de temor, emoção real, honestidade e entrega sem reservas a uma ideia. Não é preciso muito para fazer um grande disco. Neste caso bastou a paixão, a inteligência, o bom gosto e a coragem para fugir ao óbvio e experimentar coisas novas. Como Amália sabia.
Texto de Rui Miguel Abreu, para a revista PARQ, edição de Março de 2020