A Eterna Leveza de Não Saber
Texto de António Barradas
100 anos não são o suficiente para não criar laços de ligação a um presente que nos foi dado por Martin McDonagh. Há exactamente um século, numa ilha ficcional chamada Inisherin, perdida no Oeste da Irlanda, vivia-se um quotidiano que tinha tanto de pasmacento, característico e banal, como de relacionável. Uma ode à amizade ou uma catarse sobre o tempo e os seus contornos que não nos dão espaço a desperdício. Ou a ficar parados onde não queremos. Nem mesmo quando somos circundados pelos mesmos círculos há anos, décadas ou meios-séculos.
A história foca-se nessa pequena ilha e nas suas rotinas, que vão sendo desconstruídas com a acção do filme. Pádraic Súilleabháin, Siobhan Súilleabháin, Colm Doherty e Dominic Kearney, são as únicas personagens de relevo e são o bastante para nos conseguirmos rever ali, naquela 1h49 de puro detalhe e atenção ao outro. Ou a nós. Esse “nós”, é revisto em Colm ou em Pádraic. Uma comédia sem gargalhadas, onde se substituem dentes por lágrimas ao mesmo ritmo que as carroças vão passando e a guerra civil acontece ao fundo. E outra ali mesmo, no interior de cada uma daquelas cabeças.
Não discorrendo a história de fio a pavio, pois a interpretação fica para cada um, há um tema que me tocou mais do que previa: o tempo. A amizade. O tempo e a amizade. A amizade que nos faz perder tempo. Ou o tempo que nos faz avaliar cada amizade. O certo é que Colm, o violinista mais conhecido de Inisherin, chega a uma estação da vida onde o próximo comboio parece igual ao anterior. Também ao outro antes e ao que virá depois. Questiona-se como serão os que não vai apanhar. Não os reais, mas os do seu quotidiano repetitivo e que se aproxima do fim. Seja ele quando for. Coloca a vida numa balança e tudo o que tem neste momento, pesa tanto e é tão aprisionante, não o deixando assim ver o seu futuro, preso ali pelo seu peso pluma nesta equação de carne osso.
Nesta catarse demorada sobre os meses que lhe restam, decide começar a cortar as gorduras (antes de outros membros) dessa existência a cheirar-lhe a fim. Pádraic, seu fiel amigo dos últimos anos, é uma dessas gorduras. Colm pensa no tic-tac interno e nas consequências desse relógio imparável a fazer das suas nas cabeças solitárias. Decide então deixar de ser amigo do seu simples companheiro. Chamo-lhe simples, mas o violinista chama-lhe: dumb. “I just don’t like you no more”. Dito assim. Sem aviso, sem placa sinalizadora do fim, sem um sinal de horário. Eram carne da unha gasta de cada um e agora não são nada. É a alta velocidade que se desarma alguém. Como se reage ao inevitável? Como se altera o que se sente?
Colm afirma, nas raras alturas onde faz uso da voz, que não tem tempo para mais coisas pouco interessantes na sua vida, agora que os dias lhe fogem com mais rapidez do que as carroças que conduz. Precisa de desafios. Escolhe um objectivo, traça um caminho e define como o fará. Vai-se dedicar a compor músicas para violino. Sozinho, mas repleto da sua companhia. Sem as distracções que o fizeram chegar onde está, mas que não o levarão a sair dali. Para se poder flutuar, é preciso perder peso. Para ele, era o melhor amigo, essa pedra no bolso.
Do lado do nosso “simples” personagem Pádraic, vemos pureza. Leveza. Kundera alertava para uma “eterna leveza do ser” e o seu alcance foi testado. Um vazio não intencional a remetê-lo para os singelos e esquecíveis contornos do círculo do dia-a-dia. Manhã na horta, tarde no pub, noite em casa. Repetido. Vezes com conta, sendo o número certo os dias passados em Inisherin. Esta leveza de não saber não o afecta. Vive com simplicidade, porque desconhece. Não questiona, porque não sabe. Aproveita, por não ter vivido outra realidade. Há um intrínseco fascínio pela ignorância, que sempre me intrigou. Quanto mais sabemos, menos de orelha a orelha se torna o nosso sorriso torto quando nos deparamos com o mundanismo. Temos necessidade de saber mais e viver menos. E a que preço? Com que vontade? Com que intuito?
A realidade só nos embate quando nos tocam onde aleija. Pádraic só o sentiu quando lhe morreu a burra. A fiel amiga sempre lhe deu tudo e nunca exigiu nada. Deu-lhe a simplicidade, algo retribuído por ele a outros. Uma analogia sobre a forma mais bonita de amar, onde damos partes de nós e onde exigimos serenidade, sem julgamentos feitos de caneta em punho para apontar erros do passado.
Nos dias que nos restam – esperemos pelo próximo fim do mundo anunciado pelo calendário Maya ou de um calendário de Natal com chocolates para enganar Nostradamus – teremos sempre duas vias nesta íngreme e arenosa estrada: cortar o desinteresse e a mundanidade ou viver num ensurdecedor silêncio de desconhecimento e aproveitar as vírgulas dos dias. Seja como for, o fim dói sempre. Refugiemo-nos nessa eterna leveza de não saber.