A semente má que nos faz florescer o amor
texto por António Barradas
Havia uma ausência de brisa desfasada do nome do festival e muito longe da estação do ano onde se inspiram as coroas florais na cabeça, os bronzes tímidos e o muito amor partilhado através de vestimentas a fazer pandã. Eram filas serenas e mãos dadas prontas para embarcar num momento de liberdade que, algures em Março de 2020, julgávamos ter perdido. Ténis sujos, que estavam limpos; copos em punho, para o que desse e viesse e aquele outfit preso no armário não hesitou em cantar “Grandôla Vila Morena” mal se viu na rua. Com gente. Da que se toca e nos deixa tocados. Da que empurra, grita, tropeça e volta a ser incomodativa. Os suspiros não se fizeram tardar, também tinham saudades de se sentir testados. Foi entre looks festivaleiros, sentimentos a fervilhar e um ânsia de absorver tudo, que desaguámos no NOS Primavera Sound 2022. Chegámos a(o) bom Porto.
De todas as alegorias musicais ouvidas ao longo dos três dias, de todos os mosh pits, banhos de cerveja, bolhas, calos, cartas rasgadas, dedicatórias escritas e sonhos postos em lume alto, a mais cintilante das estrelas foi: Nick Cave and The Bad Seeds. A ansiedade apoderava-se de quem não sabia para onde seria levado. Iria o cantor australiano dar voz ao sofrimento depois da morte de mais um filho? Iria o sofrimento tornar-se em amor e unir-nos à revolta com a vida? Ou seria somente um cumprir de calendário neste nosso cantinho à beira-mar plantado?
Aguardei. Com todas as pulgas recolhidas da minha meninice a ouvir “As I Sat Sadly By Her Side” e a carpir mágoas demasiado idosas para a minha tenra idade. Eram amores desavindos, que julgava serem os últimos; dias menos bons onde a poesia cantada de Nick Cave e o ritmo dado pelos Bad Seeds me pagavam a viagem onde a cabeça não ia por si. Chegou o momento. O palco mexeu-se com muito mais velocidade do que a energia que cada espectador imprimia ali. Naquele espaço éramos formiguinhas a trabalhar nas mesmas reminiscências, com a força possível para as trazer de volta.
Foi um momento para congelar no tempo, sem nunca o colocarmos no microondas do esquecimento e o deixarmos derreter. Entre Jubilee Street, O’Children, Mercy Seat, Red Right Hand ou a tão afamada Into My Arms, existiram 7 minutos a diferenciar-se de tudo o resto. O meu relógio sensorial teve os ponteiros parados, como se já adivinhasse o alinhamento. Nicholas Edward Cave deslocou-se para o piano. Aquele onde descarrega as mágoas e se afasta da dura realidade dos dias. Esse mesmo, onde escreveu amor ao lado de sofrimento e o polvilhou com saudade. Nesse mesmo sítio onde tocou I Need You e me transportou com ele.
À minha esquerda estavam os meus 2/3 – metade seria chamar-lhe pouco. Nas primeiras notas de I Need You, os pêlos dos meus braços foram chamados a cena. Hirtos e frágeis; decididos e perdidos; entrelaçados na atmosfera nocturna espalhada pelo Parque da Cidade e soltos na miscelânea de sentimentos que queriam disparar. Soltou-se um mindinho em direcção a ela. Nunca trocámos olhares, porque as mãos falam que se desunham. Sentimos cada letra de um alfabeto reinventado e adaptado à nossa história.
O refrão vinha como uma avalanche e nós não a queríamos parar. Eram ninjas a cortar cebolas e as minhas pestanas a ensoparem-se com o poder da música. A meio da canção, já os nossos dedos se entrelaçavam e falavam em código morse trocando juras de paixão. Depois foram os tais pêlos hirtos, a não resistirem ao poder da atracção e a juntarem-se numa simbiose particular. Sentimos juntos, não trocando uma palavra. Demos às notas daquela história a sua verdadeira essência e ali soubemos, num concerto a Norte de Portugal, que dificilmente ficaríamos a leste um do outro.
“Nothing really matters when the one you love is gone”, dizia Cave com o poder dos dedos a decorrer num piano amestrado, que lhe é o coração fora do corpo. E talvez não importe, daí todo o peso do sentimentalismo profundo vivido naqueles 7 minutos específicos e naquela hora e meia no geral. São quase 65 anos de vida marcados pela dor, mas pautados pela energia em palco, pela força incontrolável e pela forma tão singela com que conduz quem o ouve pelas histórias, e fica pelas memórias.
O concerto de Nick Cave, no dia 9 de Junho de 2022, deu-me todo o sumo da música, sem ter de espremer nada: o ardor da paixão e a saudade das palavras. Foi extra-sensorial, acima de tudo. Não morram sem o ouvir, nem o deixem morrer sem se partilhar convosco. A esta Bad Seed não lhe deram as melhores raízes, mas juntamente com a nossa terra, conseguiremos fazer florescer o amor.
texto de António Barradas para PARQ_75.pdf (parqmag.com)