A idade de ouro

texto por Francisco Vaz Fernandes

Artistas que passam despercebidos a vida inteira está a historia de arte cheia. O mesmo parece ter ocorrido a Jacques Sultana, pintor francês, que desenvolveu uma obra que passou longe do olhar crítico e mediático. Mesmo os mais próximos, pouco conheciam sobre a sua pintura. Quando morreu em 2012 tinha salas repletas de telas de homens nus ou composições em que a presença masculina é o tema. O que se destaca de imediato é o tratamento quase fotográfico que dá aos seus retratados enquadrando o seu estilo no hiper-realismo, um movimento que nasceu nos EUA nos anos 70 para se confrontar com as telas monocromáticas ou campos de cor mais ou menos geométricos que prevaleciam na pintura na final do modernismo. No essencial este movimento cria uma aproximação ao realismo que a sugestão fotográfica dada às imagens estabelece.

Sultana muito provavelmente apreciou na sua juventude o aparecimento do hiper-realismo, mas só muito mais tarde na última década da sua vida cria o corpo consistente de pinturas que a Galerie du Passage de Pierre Passebon veio a dar a conhecer este ano. Durante a sua vida profissional usou sempre o desenho e a pintura como ferramenta mas colocou o seu talento ao serviço da produção de maquinaria industrial e em projetos de publicidade. Por isso, quando Sultana retoma a pintura a tempo inteiro tinha já uma idade avançada e pintar daquela forma hiper-realista podia parecer até algo anacrónico. Até os rapazes jovens de cabelos longos que representa parecem não ser do tempo em que os pinta. Grande parte do seu trabalho é desenvolvido por volta de 2005 longe desse atmosfera idílica que nos procura dar.

É interessante perceber que o hiper-realismo na sua aproximação a fotografia, aparece muitas vezes como comentário social, hiperbolizado, muitas vezes sarcástico. Em Sultana na sua relação como hiper-realismo procura explorar a questão do perceção do tempo fotográfico. Ou seja, a fotografia diz-nos mais sobre o que foi do que algo sobre o que é. Esse tempo morto e congelado, provavelmente numa imagem de arquivo, é o que parece fascinar o pintor. Nos quadros que nos chegaram reconhecemos até os lugares em Paris que representa, mas referem-se sempre a um tempo passado, o da sua juventude, muito idealizado.

Nesses ambientes, representa jovens louros, levemente atléticos em atividades ao ar livre. Curiosamente, independentemente da familiaridade da paisagem não os reconhecemos necessariamente como parisienses, antes mais como californianos, jovens skaters ou surfistas. Tudo parece real, porque realismo pictórico da sua técnica remete-nos para uma cena captada por uma objetiva fotográfica. Há a ilusão de que se trata de algo que acontecia ali mesmo, um instante captado por uma lente fotográfica. Contudo, o que fica é uma espécie de idealização desses momentos. Esse momentos que surgem nos seus quadros, são de certa forma como únicos e absolutos tal como acontece na fotografia e como tal absolutamente preciosos. Ou seja, Sultana reconstrói nas suas telas os momentos dourados, verdadeiros ou imaginários, com a ilusão de serem reais dado pela natureza fotografia que lhe confere uma ilusão de autenticidade

A par do hiper-realismo Sultana mergulha ainda numa certa tradição da cultura gay que muitas vezes se foca num tempo dourado imaginado que se afasta do tempo quotidiano opressor. Desde o início do século XX, na literatura e nas artes em geral houve um conjunto de artistas que procurava na aproximação a cultura clássica, nomeadamente à grega, encontrar esse mundo ideal que não deslumbravam na sua época. Para os jovens vitorianos gays, sair dos seus países proporcionava já por si, a possibilidade de uma fuga no espaço e no tempo onde puderam fantasiar um universo longínquo, que gostavam de recriar e que no fundo era uma forma de experimentarem novos modelos do ser com novos ideias e comportamentos fora do universo heterossexual. Ao contrario do universo cristão, identificavam-se melhor com deuses mais humanos cheios de desejos, moralmente duvidosos.

Tal como essas gerações que encontraram os seus deuses numa idade de ouro, também Sultana encontra em Paris os seus jovens louros que são a mira do seu desejo erótico numa época idealizada. É como se estivesse a reconstruir uma idade de ouro na cidade onde residia a partir de uma lembrança dos anos 70, época em que chegou à capital francesa, fugindo do seu contexto familiar opressivo para poder viver em liberdade a sua sexualidade oprimida. Ou seja, duas décadas depois, propõem uma realidade idealizada, numa atitude de imediatismo visual e de distanciamento emocional como também acontecia no cinema da Nouvelle Vague. Em ambos, a literalidade da imagem torna a sua pintura densa mas opaca, longe de todo significado narrativo e de toda implicação psicológica.

Faz agora sentido revisitar o universo de Sultana por ser mais um artista que sexualiza o corpo masculino na arte contemporânea através da transgressão dos códigos estabelecidos nos comportamentos do corpo. Como muitos artistas usaram a fotografia , Sultana usa a pintura que acumula em casa como uma espécie de arquivo pessoal do desejo que confronta os sistemas de circulação das representações de masculinidade convencionada culturalmente. O desejo, sobre o corpo masculino na arte contemporânea desestabiliza o olhar heterossexual até então predominante na história da arte. O que encontramos na sua pintura é uma erotização das suas personagens que nos são dadas como figuras reais e próximas. Estas pinturas , muitas vezes, produzem um estreitamento das relações artista/modelo e assim ampliam os campos de sensualidade. Há algo homoérotico semelhante ao que descobrimos nos filmes e polaroids de Andy Warhol. O efeito homoerótico que Sultana produz nas suas telas opera uma dimensão estética e política, mesmo quando a última não seria o seu objetivo imediato. Contudo as suas telas contribuem para o pensamento crítico sobre as sexualidades e a criação do erótico através da visualidade.

Texto de Francisco Vaz Fernandes para PARQ_75.pdf (parqmag.com)

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