Cum Laude

Texto de Francisco Vaz Fernandes

Várias peças em cerâmica, um néon e um registo sonoro de canções populares compõem a mais recente instalação de Rita GT que decorre na galeria Movart e tem curadoria de Ana Cristina Cachola. O trabalho de Rita GT tem-se distinguido pelo recurso indiferenciado de vários medias, entre os quais a componente performativa. Mais que materializar um objeto de arte, projetar o seu virtuosismo e domínio em certas técnicas, o que interessa à artista é o alcance da mensagem que procura transmitir através das suas criações. Há sempre uma componente expressiva, uma mensagem alicerçada na sua experiência de vida enquanto artista e enquanto mulher. Por isso, quando olhamos em retrospetiva tudo o que tem desenvolvido, onde até incluo a sua presença nas redes sociais, tudo pertence a um todo, porque se é indivíduo, mulher, mãe e artista todos os dias e em simultâneo. Rita Gt não cria barreiras entre as várias circunstâncias do que pensa ser. Pelo contrário, procura quebrar os espartilhos que são impostos, e convida todos a descobrirem-se para além das barreiras a que os sujeitam. Esse é o espírito de renovação que procura inserir no seu trabalho.

Para Rita GT a arte acontece todos os dias, porque o seu gesto artístico é indissociável do quadro sociocultural em que se insere. Nesse aspeto, qualquer momento é um momento de arte e por isso todas as circunstâncias e materiais convocados tem o mesmo grau de pertinência. Nesta exposição podemos verificar que são convocadas referências eruditas, nomeadamente, elementos que nos remetem para a história da arte conceptual, mas ao mesmo tempo, também inclui elementos da cultura popular, referências que tocam o mundo do artesanato. O néon foi correntemente usado por artistas conceptuais em rota com o desejo da desmaterialização do objeto de arte, enquanto a cerâmica, por seu turno, no ponto oposto, remete-nos para as profundezas da materialidade humana, que foi ganhando localmente as mais diferentes expressões. As cantigas das cantadeiras do Vale do Neiva preenchem o espaço, e os seus lamentos atemporais são, ainda, o das mulheres hoje, e por isso sempre atualizados. Materiais, disciplinas, surgem no seu trabalho sem qualquer ideia de hierarquização e isso traduz-se num conflito latente com as estruturas políticas e sociais vigentes. A organização social procura estabelecer categorias que são hierarquizadas e consequentemente alimentam barreiras, que no essencial, são o fundamento das relações de poder entre os indivíduos. O trabalho da artista passa por questionar e desregular a base dessas hierarquias. Nesse sentido, o seu trabalho é estabelecer relações entre elementos, que antes não eram visíveis e aparentemente possíveis.

No trabalho, de Rita GT há a negação de uma pureza ideal, um idealismo que se relaciona tradicionalmente com o universo masculino. Enquanto mulher, coloca-se certamente no campo oposto, num universo de impureza onde tradicionalmente se desenham as circunstancias do feminino. Convocar todos esses valores para experiência de moldar o barro não podia ser mais sugestivo. Leva a artista a uma ideia de continuidade, coloca-se num tráfico que vem dos primórdios e a conduz até aos dias de hoje, moldando uma identidade que se vai produzindo. As formas que faz nascer do barro estabelecem então uma conexão com vozes de um mundo arcaico do qual apenas repete o gesto, um registo sensual e fecundo que tem com a matéria. Daí que conceba formas simples que nos remetam para totens. Ver o seu conjunto ao som das Cantadeiras do Rio Neiva, ganha uma certa solenidade.

Este universo ideal construído a partir de binómios, homem-mulher, pureza-mácula é ainda revisitado na terceira elemento que compõem esta instalação. O néon constituído pela palavra, Cum Laude é bem o exemplo do embaraço irónico que a artista provoca no contexto social onde circunda. Cum Laude, uma expressão latina que em geral refere-se a um grau de louvor, classificação corrente no meio académico, um universo essencialmente masculino, ganha aqui duas dimensões. Por um lado marca a provocação de se atribuir a si mesmo, um louvor, sem pedir licença ou aprovação das demais altas instituições. Por outro, enfatiza uma ironia provocada pelo duplo sentido que a palavra ganha na sonoridade do slang inglês Remete-nos para um hino do prazer de viver porque em última instância para Rita GT, a arte deve e pode ser uma demonstração de vida.

Texto de Francisco Vaz Fernandes para PARQ_72.pdf (parqmag.com)

Movart

Rua João Penha R/C Nº14 A – Lisboa

Terça a sexta das 14h às 18h30

Sábado das 10h00 às 14h00

www.movart.co.ao