Texto de Beatriz Nascimento
Em 2012, Claire Bishop, crítica de arte e professora de história de arte no The Graduate Center, CUNY, Nova York publica o seu essay “Digital Divide: Whatever Happened to Digital Art?” que abre com a problematização de que a digitalização que tomou o mundo nos anos noventa não havia chegado ainda, na sua plenitude ao mundo da arte mainstream. A arte dos novos media teve, de facto, uma presença forte desde o final do século passado, mas como uma disciplina isolada e paralela. O digital foi aceite como ferramenta, mas não totalmente como temática e finalidade, por medo da perda da aura da obra de arte, vivendo, até agora, na periferia das expectativas.
Para além do palpável, existe também de uma nostalgia generalizada da população, e que se traduz na arte contemporânea, como Bishop desenvolve. Uma espécie do renascimento do analógico e dos meios obsoletos de comunicação pré-digitais que evita a novidade tecnológica na arte. Esta corrente recua ao passado enquanto os avanços tecnológicos são cada vez mais proeminentes, criando uma espécie de ciclo renovador, como na moda, de vários media e suportes artísticos (VHS, Vinil, Fotografia 35mm).
De 2012 a 2021, o mundo viu grandes mudanças e o avanço tecnológico parece ser exponencial, materializando (ou imaterializando) todas as fantasias da ficção científica. No momento em que surgiram, a fotografia e o vídeo foram aceites quase de imediato, mas o digital causa uma certa desconfiança e roça o distópico sempre que é falado na arte e nas relações interpessoais.
Até recentemente a visão de Bishop parecia imaculada e o mundo da arte parecia impenetrável a uma revolução digital, porém, devido à situação de risco do mercado causada pela pandemia Covid-19, ocorreu uma digitalização, quase forçada, das exposições e transações no mundo da arte.
A Primavera de 2021 trouxe-nos um novo acrónimo para o diálogo da arte digital com um boom inédito no nosso século na arte. Os NFTs – non-fungible tokens– são uma tecnologia que surgiu em 2015, mas só em 2020 é que começou a ganhar verdadeira relevância, graças à rápida digitalização no momento pandémico. Os NFTs são unidades de dados armazenados numa rede digital, chamada blockchain, que consiste numa base de dados composta por vários blocos interligados e totalmente descentralizada. Todas as informações que são cunhadas e encriptadas na blockchain não podem, tecnicamente, ser alteradas nem ocultadas e, portanto, essa tecnologia certifica um ativo digital – uma imagem ou um vídeo – como único e imutável.
Esta tecnologia nasceu com intenções claras de democratizar a arte e tornou-se muito comum entre os artistas da era digital, pois oferece-lhes uma maior liberdade para a divulgação e venda do seu trabalho através da web e certificando a sua autoria e autenticidade. Até então, o leque de oportunidades para a arte digital no espaço do mercado da arte era reduzido. A entrada desta tecnologia no mainstream e nos grandes nomes do mundo da arte veio incitar uma das discussões mais controversas da arte contemporânea do século XXI e repensar o mundo da arte como o conhecemos. Exemplo disso foi o caso da obra “The First 5000 days” do artista Beeple, que joga muitas vezes com a relação utopia/distopia do digital, que foi leiloada através da leiloeira de renome Christies’ e alcançou o valor de 69 milhões de dólares americanos, chegando ao top 3 de obras mais caras vendidas em leilão de sempre.
Também descendente da evolução tecnológica, o minimalismo veio definitivamente mudar a forma como os seres humanos percecionam a propriedade e a noção de colecionar. Há cada vez mais uma necessidade de possuir poucos bens no espaço de uma casa e de centralizar muitos dos serviços e otimizações em aplicações digitais, muito por questões ligadas à sustentabilidade e simplicidade, mas o intangível não elimina a nossa característica humana de colecionadores natos, há apenas uma alteração do paradigma. A estética de simplicidade tecnológica é muto atrativa para colecionadores mais novos e segue em concordância com o pensamento e linha da arte digital. O espírito dos NFTs alinha-se totalmente com esta filosofia e cria uma oportunidade de colecionar digitalmente, o que involuntariamente já fazíamos com ficheiros nosso computador, fotografias na cloud e no Instagram e playlists altamente curatoriais no Spotify.
Para além da sua entrada no mundo da arte, os NFTs são vistos como oportunidades de investimento financeiro e, é muito devido a esta sua característica que esta tecnologia se tornou no centro das atenções dos últimos meses, levantado outras questões morais no que envolve liquidar activos artísticos em busca de grandes retornos financeiros, numa junção inédita no contexto cultural e artístico mundial. A entrada desta tecnologia no mercado da arte criou a possibilidade de muitas galerias começarem a aceitar pagamentos em cryptomoedas para obras de arte (digitais ou não) – realidade distante há dois anos atrás e muito atrativa para uma certa elite financeira. Os NFTs (e toda a arte dos novos media) passaram rapidamente de um nicho para a grande novidade do mundo artístico.
Apesar da desconfiança que a digitalização possa causar no mundo da arte e nas nossas relações interpessoais, depois de uma Primavera digital na arte, o Outono traz-nos o regresso às grandes feiras de arte –Art Basel e Art Basel Miami Beach – e mostra-se focado no estar presente e a sua relação imediata com a arte.
É com a chegada da nova estação, e com as grandes feiras de arte internacionais, que é finalmente possível posicionar dos NFTs no mercado da arte. A tecnologia dos NFTs e o digital não parecem, de momento, uma tendência descartável. Começa a existir um consenso artístico e uma presença forte da arte digital após um grande hiato de negação pelo mundo da arte. Crê-se que o enraizamento da arte digital no mainstream não será feito por via de eliminação do material e a nostalgia dos media do passado será sempre um sentimento renovável em coligação com a ânsia e curiosidade pelo futuro. O receio da evaporação da materialidade na arte, assim como na digitalização das relações humanas com as redes sociais parece distante. Evocou-se uma certa histeria de que as relações humanas cessassem assim como que as exposições e coleções passassem a ser digitais. Tal não aconteceu, e o último ano e meio de distanciamento social foi a prova disso. O futuro é digital e apesar do mundo da arte começar a aceitar este media em absoluto, o presente não abre mão da sua componente material e pessoal.
Beatriz Nascimento
Para a Parq #71, Outubro 2021