Lost and Found – B Sides and Rarieties
texto de Carlos Alberto Oliveira
Não estava nos seus planos editar uma retrospetiva da sua carreia numa coletânea de canções. Contudo, a Pandemia em que vivemos ditou o mote e, ao invés de uma reunião de êxitos, deu corpo a músicas dispersas e perdidas. David Fonseca falou com a PARQ sobre o seu mais recente disco Lost and Found – B Sides and Rarieties, numa conversa informal que deambulou entre as suas motivações, o seu gosto pela escrita, a fotografia and beyond. Lançava-lhe o desafio de explicar melhor as canções do seu novo disco, no sentido de como é que foi perder-se e encontrar canções no processo criativo.
Penso que todas as canções são diferentes, todos os processos foram diferentes, mas há uma ligação na medida em que partem de imagens, de situações que são retratáveis na minha cabeça, onde imperam mais os ambientes em que se movem do que propriamente as sensações. O que distingue este disco do que normalmente faço é que este tem as canções que ficaram fora desses outros discos. E a razão prende-se com o facto de serem canções muito bicudas, ou porque são baladas, e eu já tenho quatro baladas no disco, e não vale a pena ter uma quinta, ou, sobretudo porque não têm muito a ver com as outras canções do disco.
Apesar de não ser um Best Of, é uma retrospetiva, e é também muito influenciada pelos tempos em que vivemos, sobretudo por normalmente não se poder dar ao luxo de parar para pensar e refletir, como já referiu em outras entrevistas. Contudo, não deixa de ser curioso ter optado por lados B e não pelos singles de sucesso, que chegariam ao grande público de forma mais imediata.
Verdade. Já tive muitas oportunidades de fazê-lo antes da pandemia. Esteve de fato muitas vezes em cima mesa, não por mim mas pela minha editora. Quando fiz 20 anos de carreira e comemorámos no Coliseu, surgiu essa hipótese novamente. Na realidade sinto que tenho muitas coisas para fazer. A ideia de parar durante dois anos e só falar de material de há dez ou quinze anos é uma coisa que não motiva. Esta reunião de temas teve interesse para mim porque sabia que a maioria do público nunca os tinha ouvido. São temas nos quais tenho muito orgulho, mas que estavam debaixo de um pano. Portanto, isto está mais perto de um best of, de uma retrospetiva do que já fiz na minha vida. Podemos avançar agora para discos novos.
Portanto as retrospetivas significam para si uma paragem.
Penso que as retrospetivas são boas quando uma pessoa já não tiver vontade de fazer outra coisa. Mas na realidade fazer música é a melhor parte deste processo todo. Na realidade promover discos é divertido mas não é tão divertido como fazê-los. Eu lembro sempre de uma história, quando há uns anos me cruzei com um outro músico e ele desabafa dizendo que finalmente acabara, que agora é que podia relaxar. Penso que é exatamente ao contrário, porque para mim esta parte é a mais espetacular de todas. Porque estás a gravar as tuas canções, com os teus instrumentos, estás com as pessoas que tu gostas, com os teus músicos, é muito divertido. O pior vem depois. Depois é que não podes relaxar. Começa a fase de promoção, de fazer os vídeos e as sessões promocionais nas lojas. Que também é uma fase muito importante, senão as canções não ultrapassam o espectro. Mas é menos divertida…menos relaxada. A concorrência é demasiado grande.
Mas agora tudo é diferente. Cada vez mais os músicos têm estúdios em casa.
Sim e não sou só eu, são todos os músicos. Uma das coisas boas que teve a modernização dos métodos de gravação é que são baratos. A primeira vez que comprei um estúdio foi há 20 anos e custou-me um carro e meio. Mas tratava-se da minha independência em relação aos estúdios e à aprovação final das editoras. Já aconteceu a minha editora ouvir a minha master final uma hora antes de ir para a fábrica. Não existe este diálogo entre a editora e o músico. Mas às vezes pode ser mau não haver este diálogo, mas como sou uma pessoa de ideias fixas e meio ditador daquilo que faço, queria muito ser independente.
Dentro desta nova realidade, que o Sérgio Godinho chamou de “o novo normal” na sua mais recente criação musical, considera que o está a influenciar ou vai influenciar no seu processo de explorar e fazer chegar a sua música ao público, sobretudo agora com recurso aos lives online?
Eu não sou muito apologista dos Lives, dos ecrãs. Se não fosse pela música nem teria redes sociais, que é uma coisa que me mortifica muito. Não acho que acrescente significativamente alguma coisa à minha vida. No entanto, tenho que assumir que é uma maneira muito mais simples de fazer chegar a minha mensagem ao público. Agora seguramente esta fase epidémica que vivemos vai alterar a forma de se chegar às pessoas. Não toco ao vivo desde Fevereiro e uma das razões pela qual gravo um disco é poder apresenta-lo em concertos ao vivo. E aí o feedback que temos dessas canções é muito maior do que os singles, porque o público tem oportunidade de ouvir as canções num formato que é absolutamente espetacular: o som é alto, estamos às escuras, as luzes são incríveis, estamos com os amigos, junta-se tudo para que as canções vivam num planeta completamente diferente. Mas essa parte da nossa vida está suspensa.
Neste contexto, alterou necessariamente todo o processo.
Noto que alterou muito a minha vida, na medida em que estava a escrever um novo disco antes da pandemia começar, e mal entramos em confinamento, abandonei as ideias todas, porque deixaram literalmente de fazer sentido. Porque estava a fazer uma coisa muito mais festiva, que precisava de estarmos todos juntos. Uma vez que estamos todos distanciados deixou de fazer sentido. Portanto comecei a fazer tudo de novo, na medida do possível deste novo normal que o Sérgio Godinho fala. Eu acho que quem escreve sobre uma realidade social, como ele sempre fez, acaba por refletir o momento que vive. O momento que eu vivo agora é este e isso tem uma influência muito grande naquilo que eu faço.
Provavelmente resultará num novo disco.
Espero que dê para um novo disco. Quando as canções estiverem todas prontas logo vejo se dá ou não. Escrevo muitas canções, entre vinte a trinta, por disco e só um terço é que vai para o álbum. E outros dois terços nem sequer vão para a mesa de mistura, são só Demos. Foi um truque que eu aprendi com os The Cure. Li uma vez uma entrevista com o Robert Smith que dizia que o produtor deles os obrigavam a ir para estúdio com três vezes mais canções do que aquelas que entrariam no disco. Porque se só tivessem dez canções não tinham termo de comparação e considerei que isso era muito inteligente do ponto de vista de organização de trabalho e de ambição em perseguir um melhor resultado.
Nesse caso o processo de criação é mais exigente.
Por norma eu trabalho mais do que é preciso porque me ajuda e, com o tempo, quanto mais uma pessoa se dedica a uma atividade mais difícil fica. De cada vez que se usa uma técnica nunca se deve repetir. Lembro-me sempre desta fórmula que usei no single “The 80’s”, em que em cada terço da canção subia um tom, e quando se sobe um tom, a canção parece que sobe também para outro nível qualquer. Usei-o porque o tema era virado para o universo dos anos 80, bem como a estrutura da canção nessa altura.
Retomando aos lados B, sendo canções mais experimentais e mais melancólicas, e não tão positivas, como o David gosta tanto de conceber, não deixa de ser igualmente muito interessante a opção de as reunir num álbum, sobretudo porque, na minha opinião, estes temas dão uma dimensão ainda mais potente à sua voz.
Ah! Muito obrigado! Uma das coisas que eu gosto deste disco dos Lados B é que tem um espaço de 15 anos e eu sei quais são as canções mais antigas e as mais recentes. Noto a minha voz a mudar ao longo desses anos todos. Com o tempo penso que vai ficando mais cansada, mais grave, ficando com um aspeto diferente. Mas sim é verdade, nestas canções exploro dimensões completamente diferentes. Uma das particularidades deste disco, é que há duas ou três canções que começam com instrumentais de um minuto, uma das razões porque ficaram fora dos álbuns, uma vez que a editora considerava isto demasiado longo. A ideia de melancolia está mais presente porque estas canções são muito mais profundas do que as que existem nos outros discos. Quando escrevi “é-me igual”, foi concebida em círculos. Quis escrever uma canção sobre a sensação de as pessoas não saírem do mesmo lugar. Mas quando escrevo este tipo de canções já não estou nessa realidade. Se assim fosse, nunca iria conseguir escrever aquela canção, dado que essas situações não são dadas à criação. Aliás, em geral, os fenómenos depressivos não são dados a fazer absolutamente nada. Quanto mais estável estiver, mais fácil é revisitar essa situação. E quanto mais à vontade estiver, mais fundo vou.
Existem músicos que afirmaram que os estados emocionalmente difíceis e alterados ajudavam à criação.
Eu também achava isso. Mas atualmente considero que estamos a manipular o que uma pessoa sente. Escrever canções é um talento. Se a pessoa não o tiver, não melhora, seja em que estado estiver. Picasso dizia que a inspiração quando chega é quando te encontra a trabalhar. Ou seja, se trabalhar muito é natural que grande parte do que faça não seja muito interessante mas quando crio uma canção que considero admirável é porque a trabalhar criei condições para que ela nascesse. Mas não há uma formula mágica. Há canções que demoram semanas a escrever, outras são desenvolvidas em quinze minutos e outras que demoram muito tempo a escrever e não valem nada. E se não valem a pena eu deito para o lixo e pronto. E saber que a canção é uma merda também é um talento, ou seja, saber e assumir isso. Como trabalho com muitos músicos, instituo a regra de que têm que ter muito flanco para a eventualidade de estarmos a gravar música durante três dias e termos de deitar tudo para o lixo. Se estivermos a gravar uma canção e se se concluir que fica melhor sem bateria, retiramos a bateria. Não tenho problema nenhum com isso. Mesmo que seja eu a tocar.
Como é que se lida quando o resultado do trabalho não está bom?
É igual. O que importa é melhorar. Uma vez gravei uma canção inteira que era para ser uma canção animada, com 120 batidas por minuto, mas no final ouvi-a e concluí que afinal funcionava melhor se fosse uma balada. E gravei-a com uma guitarra. Está no álbum Seasons, chama-se “No more tears running”. Inicialmente tinha-a construído ao estilo dos Arcade Fire, mas depois ouvi e pensei que a canção não continha aquela euforia toda. Retirei todos esses elementos e peguei na guitarra. Perdi uma semana inteira porque esses elementos foram para o lixo. Mas faz parte do processo.
É interessante verificar esse distanciamento e o pragmatismo com que encara as canções, e que tenha essa capacidade de revisitar as sensações.
De fato, tenho a capacidade de voltar aquelas sensações. Tenho o distanciamento, de voltar dois passos atrás. Apesar de considerar que não escreva sobre o passado. Escrevo sobre sensações que presentemente consiga revisitar. Quando me preparo para um disco, faço muitos retiros para escrever. Revisito todas as ideias colecionadas, palavras, melodias, pequenas partes de canções e construo uma timeline. Trata-se de uma espécie de uma árvore em que antevejo se vale a pena ramificar ou não. Nesses momentos já tenho um distanciamento grande mas sei exatamente o que experienciei. Mas nem sempre escrevo sobre o meu ponto de vista. Gosto de escrever sobre o ponto de vista da pessoa que observei, o é que estaria a pensar, a sentir.
Podemos dizer que o David sentiu necessidade de explorar mais a sua escrita, criando o Jornal no seu site?
O meu jornal serve para várias coisas. Quis começar a escrever publicamente, porque eu estava muito farto de existir nas redes apenas como uma imagem, porque é muito mais superficial. O que eu quis fazer com o Jornal era apelar ao meu lado menos superficial e explorar outras temáticas, provavelmente apelo a muito menos gente, mas para mim é muito mais prazeroso, porque trocamos ideias, porque falo sobre coisas que tenham mais a ver comigo, e vou mantendo assim as redes de uma forma mais pessoal.
Eu gostei imenso de explorar esses textos, e o que eu mais gostei foi aquele em que descreve uma tarde nos Açores, a fotografar miúdos a mergulhar para o mar.
Uma das coisas que eu mais gosto de fazer na minha vida é fotografar e revelar os negativos. Dá-me uma paz de espírito que eu não consigo explicar muito bem porquê. Essa fotografia foi tirada quando fui fazer um concerto nos Açores. Geralmente quando vamos aos Açores temos um dia só para nós, normalmente o dia em que chegamos. Quando chego, costumo alugar uma bicicleta e dou uma volta pela ilha. Um dia encontrei esses miúdos e fiquei a observá-los. Mergulhavam e voltavam. E passaram toda a tarde a mergulhar, o que me intrigou. Concluí que o prazer de mergulharem vezes sem conta prende-se com o facto de acharem que o próximo vai ser sempre melhor. E fez-me questionar a minha própria atividade. E guardei aquela foto, onde a coloquei numa parede de minha casa. Todas as fotos que me dizem alguma coisa exponho em minha casa. E curiosamente quase todas giram à volta do mesmo. Só que em situações completamente diferentes. Penso que retratam sempre a capacidade de explorar o desconhecido, de iniciar sempre algo de novo. Por isso é que eu nunca pensei em retrospetivas. Para mim o fascínio, em geral, é o do inicio. Começar de novo.
texto de Carlos Alberto Oliveira para a revista PARQ 67 Outubro de 2020