Depois de um período em que Horácio Furtado, apresentou, no essencial, trabalhos em torno da palavra, em que procurava dar-lhe uma materialidade e enfatizar essa relação com o espaço e o edifício social, agora regressa à representação pictórica. Na galeria Balcony em Lisboa apresenta um conjunto de telas, que surgiram em grande parte no momento do confinamento obrigatório. À primeira vista são, de facto, representações do próprio artista entregue ao seu trabalho no seu atelier. Prevalece, no essencial, o desenho representativo, até com um certo sentido imediato, pese embora a contradição do processo moroso, que a pintura a óleo impõe, predispondo para estados mais contemplativos. Apesar das alusões ao real, ao quotidiano que imaginamos ser do artista, onde não faltam referências de letras e palavras, encontramos também, uma dimensão onírica que ajuda na construção e eficácia do poder da imagem se constituir como linguagem.

Não será por acaso, que Horácio Frutuoso procure trazer para esta exposição a referência a São Jerónimo, que é uma figura tutelar do edifício da cultura ocidental de tradição cristã. É uma personagem, onde o artista se pode rever, porque na iconografia que se fez de São Jerónimo durante séculos, prevalece a dualidade. Umas vezes é representado como o erudito que traduziu do hebraico para o latim a bíblia atual, outras vezes é o asceta, o homem que abandonou os prazeres de Roma para se dedicar a ascese. Essa dicotomia ensaia-se de uma forma subtil nessas representações dos duplos que vão aparecendo em luta ou encobertos como se fossem fantasmas. O próprio espaço do artista solitário não se encontra longe da caverna, onde S. Jerónimo se recolhia, se o entendermos como um refúgio do mundo. A própria t-shirt às riscas com que se representa tem, socialmente, uma carga negativa. No imaginário popular é, em geral, referente a indivíduos penalizados e mais uma vez em estado de isolamento, como é o caso da prisão, por exemplo.

Evidentemente, o artista não procura tecer algum périplo moralista. Num plano imediato propõe-se frisar essa possibilidade de um indivíduo ser visto e experimentar uma dualidade de sentidos, que provavelmente, todos nós já sentimos. Compreende que há uma disciplina social que fabrica sujeitos, a partir de um poder que o toma, por um lado como o objeto e por outro como o instrumento de um certo exercício de poder. Enquanto produto e produtor social, Horácio Frutuoso encontra nessa necessidade de se autorretratar, como refere o texto da folha de sala da exposição, um ponto de reflexão, numa lógica do procura do individuo, tal como podemos ver nas suas autorrepresentações que apresenta. O artista está, pois, sozinho sujeito a uma lógica disciplinar, vive o drama da sua própria clausura em que necessariamente se torna o meio, em que se insere. Tanto o mundo como o seu atelier, assim como o eu que se projeta, socialmente ou na tela, são no fundo o seu campo disciplinar, onde ensaia a sua individualização como garantes de um modo de vida consolidado. Nele, o artista apresenta-se como um intermediário ativo, como um atalho entre os acontecimentos da vida e o devir da arte.

BALCONY

CONTEMPORARY ART GALLERY

Rua Coronel Bento Roma 12A, Alvalade – Lisboa

Seg. a sáb. 14h – 19h30

Até 18 de Novembro

www.balcony.pt