O ritual de uma adolescência curiosa

texto de António Barradas

Na idade na qual nascem pequenas esperanças, ao mesmo tempo que emergem grandes borbulhas, os momentos pelos quais ansiava assemelhavam-se a rituais. Havia uma beleza na espera, mesmo para quem roía todas as unhas até parecerem coutos, borrachas gastas ou um calipo derretido ao sol.

Era um momento de ansiedade a desvanecer-se com os números. 4 anos, já (não) posso comer cerelac, por não caber no bibe; 6 anos, posso ficar acordado para ver os Malucos do Riso; 8 anos, já posso ter alguma opinião e não andar 3 períodos com jardineiras vestidas; 12 anos, posso andar à frente no carro; 14 anos, posso beber as primeiras cervejas e aos 16… bem, aí foi um mundo a abrir-se. Pelo menos achei eu, enquanto fazia o buço e me preparava para um segunda vida, sempre com um penteado à Manuela Moura Guedes nos anos 90, sem calças de fato treino vestidas e com mais pulseiras nos pulsos do que o círculos no antebraço, a tatuagem da moda.

Ainda estava na flor dos meus 14, quase a entrar no secundário (onde não criaria raízes) e já tinha visto vários bolbos a fazerem promessas. No meio de todas aquelas, ditas da boca para fora, tal e qual perdigoto a sobrevoar um oásis de palavras vãs, houve uma que me ficou na retina. Daquelas que fazem os pré-sonhos, vividos naquele fechar de olhos prolongado antes do culminar de um dia em velocidade cruzeiro, ser o tranquilizante perfeito para ansiar pelo amanhã. “Aos 16 anos, vamos ver o The Mist. Um dos meus filmes de terror preferidos. Só nessa altura, porque não tens idade para ver antes”, dito assim, sem aviso prévio e envolto num MISTicismo entusiasmante. Encarei como um desafio. A espera. Aquela que hoje só vem no dicionário pelo bom nome da língua, mas que é verbo completamente…outdated, para não desfasar da actualidade. Decidi cumprir com a minha palavra e arranjei um significado maior para quando fizesse 16 anos. Seria A idade – pré-sonhava eu.

Chegou o dia. Tudo o resto requeria atenção. Os pormenores de cada ritual são o que o torna singular. O meu era aquele. Há dois anos a guardar a certeza de que o meu aniversário não seria igual aos de sempre. Mesmo com as mesmas tradições, os clichês repetidos “nem acredito que já tens 16”, o bolo com o sabor a casa – mesmo enjoando à segunda dentada – e as feições formatadas para receber parabéns sem esboçar a reacção errada, na altura menos certa. O cenário estava montado. Uma televisão, um artefacto maya, ou como quem diz, um dvd, e a vontade inigualável de ver aquele filme. Às escuras, como mandam as regras. Começou. A desilusão também. A expectativa vence por K.O a realidade, não lhe dando sequer hipótese de desforra. Um filme mal feito, previsível e sem qualquer tipo de susto, longe daqueles que fazem sair uma pinguinha. Foi uma montanha russa a descer a pique e a sensação de surpresa a sair-me do corpo, como se já tivesse desempenhado o seu papel.

Hoje mal me lembro do filme. Sei que tinha nevoeiro, pessoas a morrer e monstros estranhos a aparecer a cada três frames. Um clássico de sábado à noite num canal generalista. Não está no meu top 500, nem consigo mencionar dois actores de cabeça sem ter de ir ao IMDB. Tinha desligado a meio, caso o tivesse visto numa insónia ali entre os 19 e os 21. Porém, nunca me esquecerei dele. Do momento. Não das imagens, do ambiente, da história ou da mensagem. De toda a espera – que parecia eterna – , por algo que poderia ter feito sozinho. Sem dizer nada a ninguém. Mentir seria sempre a parte mais fácil. Aos outros, não a mim. Num mundo onde já não existem surpresas, é sempre o imprevisível o prato forte. Decidi fazer daquilo uma missão. Não ver até quando fizesse 16 anos. Os restantes 15, até então, tinham sido polvilhados de experiências feitas sem qualquer tipo de vontade de aguardar.

Os dezasseis passaram. Deixaram a saudade necessária para se tentar aproveitar mais os intes. Ou não, mas também não é relevante, visto que nunca aproveitamos nada na totalidade. O The Mist é péssimo, vale os 50 cêntimos numa banca da Feira da Bagageira, mas só se ficar bem como decoração de escritório. Mas nada disso interessa, na verdade.

Não podemos deixar que se percam os pequenos rituais. Seja com amigos, família ou com o vizinho que só vemos 6 vezes por ano no elevador. É esta impaciência medida a solução certa para desfazer rotinas, criando outras com o factor surpresa. Deixemo-nos absorver pela expectativa de algo surpreendente, mesmo não alcançando, nunca poderemos dizer que não fizemos por isso. 

texto de António Barradas para PARQ_76.pdf (parqmag.com)