Jorge Queiroz

Texto Francisco Vaz Fernandes

Em Portugal a par do mundo ocidental, a geração de Jorge Queiroz pouco se confrontou com os novos dilemas da pintura que, herdeira de um processo niilista, encalhava num estado zero em profunda crise de representação. Nos anos 80, ainda assistimos a um processo reativo do sentido único modernista e observámos um retorno da figuração com um contorno revisionista. Era uma pintura desinibida com inspirações clássicas e historicista dentro de um quadro pós-moderno. Porém, rapidamente restrições identitárias assombram o panorama artístico geral e também a pintura é questionada na sua legitimidade e poder de representação, comparando com outros processos de maior alcance narrativo. Nesse percurso, a própria cor e até a matéria da pintura entram em falência e pouco mais sobrava para além do desenho que aflorava na tela, muitas vezes tímido, quase imaturo, na maior parte das vezes sobreposto por textos narrativos, esses sim sempre abundantes e em expansão.

Antes de referir o conjunto de obras expostas na Galeria Bruno Múrias, talvez fosse útil aludir que, para além da prática da pintura, o desenho tem tido também um papel importante na obra de Jorge Queiroz. No período em que reside em Nova Iorque experimentou muitas técnicas diferentes, no qual o desenho também é presente, não só um carácter experimental, como define muito daquilo que hoje reconhecemos na sua pintura. Nessa época em que questiona a representação, o seu desenho era subsidiário de muitos estilos, nomeadamente a BD, o cartoon e elementos vindos da cultura da rua. Cruza-os com referências de tradição erudita. No essencial, essa diversidade de referências convocadas no desenho não estabelecem qualquer hierarquia e permitem até o espetador sair das suas próprias hierarquias culturais.

Faz sentido recriar este panorama, para melhor compreender as circunstâncias do trabalho de Jorge Queiroz, nomeadamente o conjunto de pinturas que apresenta na Galeria Bruno Múrias, sob o título geral “Tempo para Tudo e vice-versa”. No seu conjunto apresenta títulos de quadros que se referem a estados imensuráveis, estados efémeros, difíceis de quantificar e de dimensão abstrata. São já à partida um indício de que a própria dimensão espacial seja também difícil de nomear na sua composição. No fundo é uma obra que resulta de uma colisão de elementos díspares que perdem o seu ponto de origem e ficam muitas vezes deslaçados das suas referências O seu interesse não está tanto em exibir a capacidade em que pode dominar vários géneros de pintura, nem de os colocar lado a lado, como repetidamente foi feito por outros artistas. O seu interesse está no choque entre esses diferentes géneros num estado de explosão que permite novas perspetivas ao artista. São elementos que saídos de uma decomposição, encontram o seu lugar e reposicionam-se. Os próprios aspetos abstratos da pintura são tratados como substância, elementos concretos reproduzíveis. São géneros de pintura, formas de tratar, ao final de contas, restos de traços de sociedades, que podem ser tratados como representações, tal como uma silhueta humana.

No campo da composição a pintura de Jorge Queiroz cria, em geral, uma alusão a diferentes perspetivas, horizontes às vezes povoados por silhuetas humanas, árvores ou animais. No seu conjunto levam-nos a percorrer a sua superfície, cheio de acidentes tal como podemos fazer perante uma vista ao nosso alcance. Apesar da sugestão, a ideia de paisagem na sua pintura é longínqua e não é um fim em si. Mais do que a representação de um mundo real, a sua pintura procura criar um pathos que só diz respeito a matéria pictórica. Suspensa por uma qualquer força concêntrica e gravitacional a matéria encontra as circunstâncias e as formas de se agregar num processo de revelação. É como se toda a pintura fosse apenas “uma” e em trânsito, e como tal, o artista pudesse convocar caminhos e encontrar sentidos para si, seja visitando um sentido de composição de Hieronymus Bosch, a emoção da cor de Odilon Redon, a materialidade de Per Kirkeby, para apenas referir alguns ao longo do tempo. Muitos outros estarão dentro desse processo porque se trata de tráfego que está em constante renovação sempre que se experiência a prática da pintura, para que a possa chamar de sua. Implica pois, um processo em que cada um no seu tempo, seja esse tempo. É assim, essa vontade de marcar o seu tempo que faz com que a pintura de Jorge Queiroz seja então, ainda uma matéria vibrante e que permita o artista insistir sobre os seus despojos.

Texto publicado em PARQ_70.pdf (parqmag.com)

Jorge Queiroz

Galeria Bruno Múrias

R. Cap. Leitão 16, Xabregas, Lisboa

telf 218 680 840