O Fado do Hip Hop

Tem por título Bairro da Ponte, o novo disco em que Stereossauro cruza Carlos do Carmo, Camané, Gisela João e Ana Moura com Nerve e Chullage e Slow J e Ace e tanto mais…

O hip hop e o fado têm muito mais em comum do que se poderia pensar. E só alguém que amasse tanto as duas culturas poderia facilmente ver o que as une em vez de se focar no que as separa. Alguém como Stereossauro.

Stereossauro é um veterano que carrega nos ombros uma carreira que se estende pela melhor parte de duas décadas: experimentação solitária primeiro, no quarto, com discos e gira-discos, com colagens disparatadas, tudo alimentado a uma curiosidade infinita, daquela que ainda não se saciava com uma pesquisa no google; depois veio a aliança com o seu inseparável companheiro DJ Ride, cabeça de pensamento similar, com quem criou os Beatbombers e ao lado de quem conquistou dois títulos mundiais na exigente arte do scratch; e em cima de tudo isso contabiliza ainda várias mixtapes, produções avulsas, batidas criadas para muitos MCs, exercícios de derrube de barreiras entre o que entendia ser o “seu” hip hop e a música portuguesa que sempre abraçou – os Clã e Pedro Abrunhosa, os Mão Morta e Sérgio Godinho, Zeca Afonso… ou Carlos Paredes e Amália.

Quando remexeu em “Verdes Anos”, assumindo os pads da sua MPC como o mestre assumiu o aço das cordas da sua guitarra, Stereossauro abriu – talvez seja melhor escrever “escancarou” – um universo de possibilidades: o maestro António Vitorino de Almeida, numa cerimónia oficial, viu e ouviu Stereossauro a reinterpretar “Verdes Anos” e aplaudiu o resultado. De repente, ganhámos todos uma música que era nossa, que era moderna e intemporal, que olhava para o passado e para o futuro e por isso definia o presente. Foi a música escolhida pela RTP para anunciar a chegada a Portugal da grande festa da canção: os Beatbombers puderam depois interpretar a sua versão de “Verdes Anos” na cerimónia de encerramento do Festival Eurovisão da Canção perante uma plateia verdadeiramente global.

Stereossauro deu agora o passo seguinte: BAIRRO DA PONTE. O trabalho com que sucede a Bombas em Bombos, o seu primeiro álbum em nome próprio, editado em 2014, é, simplesmente, o mais ambicioso da sua carreira e um disco que tem tudo para assumir uma justa condição de registo histórico.

É com a voz de Amália que o Bairro da Ponte se abre: “eu canto este meu sangue, este meu povo”, revela a diva. E está criado o clima para um disco que ao longo de 19 faixas reúne um número sem precedente de convidados num projecto destes. Por ordem de entrada em cena: Camané, NBC, Slow J, Papillon, Plutónio, Ana Moura e DJ Ride, Dino d’Santiago, Carlos do Carmo, Legendary Tigerman e Ricardo Gordo, Gisela João, Capicua, Ace, Rui Reininho, Nerve, Razat e Paulo de Carvalho, Holly e Sr. Preto.

Gente do Norte e do Sul. Gente do fado e do hip hop. Do rock. Gente de várias gerações, de diferentes posturas, com diferentes sotaques. Gente de todas as cores. Homens e mulheres. Cantores, músicos e produtores. Amigos: como Ride e Holly, claro, e como Razat, companheiro na exploração dos fundos mais graves que tristemente desapareceu em vésperas da edição deste BAIRRO DA PONTE. Ele era um natural habitante deste lugar cheio de futuro.

E há tanto mais aqui dentro: as vozes de Amália ou de Alfredo Marceneiro, as guitarras de Carlos Paredes ou António Chaínho e até o assobio de Vasco Santana. Depois de tantos anos mergulhado em feiras de velharias em busca dos vinis de que também se faz a nossa memória, Stereossauro deu o passo seguinte e foi beber directamente à fonte, aos arquivos, onde repousa a memória de uma cultura que está mais viva do que nunca. Pegar nessa memória e devolver estas vozes, estes dedos, estes sons e estes sopros ao presente é erguer algo de novo. E Stereossauro, DJ e produtor, assume também no disco a condição de músico e até de letrista: criou ele as palavras que Gisela João ou Ana Moura cantam neste disco. Um bairro novo, portanto. Erguido à sombra desta ponte que nos continua a permitir cruzar águas e tempos, vidas e culturas. É assim que se faz história. E esta é a história de Stereossauro.

Texto de Rui Mário Abreu para a revista PARQ, edição Março de 2019