Entre o ocidente e o oriente.

Texto por Francisco Vaz Fernandes

Em exílio forçado, Shirin Neshat é uma artista iraniana que vive nos EUA desde os ano 70 porque o seu país de origem tornou-se um lugar dominado por um regime teocrático onde é interdito quem nele deslumbre a liberdade. Com 65 anos, a artista, consagrada com prestigiado Leão de Ouro na Bienal de Arte de Veneza (1999) e premiada no Festival de Cinema de Veneza (2009) foi durante anos a voz da contestação ao regime político vigente no Irão que restringe as liberdades das mulheres, e não cumpre princípios básicos consagrados na carta dos direitos humanos. A sua voz torna-se novamente pertinente quando o novo governo iraniano de Ebrahim Raisi, volta a mostrar uma versão mais musculada do regime, mais controlador das liberdades, do qual, Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, acusada pela polícia dos costumes de usar de forma imprópria o véu, foi a sua última vítima.

Shirin Neshat, Women of Allah, 1994-1997, fotografia

Não é por acaso que o reconhecimento internacional de Shirin de Neshat se dá nos anos 90 após o período de governação de Aiatolá Khomeini quando o regime agudizou o seu carácter ideológico, moldou os costumes, aplicando o regime punitivo que conhecemos hoje. As temáticas abordadas por Neshat alimentam-se desse contexto de opressão, especialmente dirigido contra as mulheres, desenvolvendo problemáticas que ganham atenção no mundo livre.

Shirin Neshat começa o seu percurso em 1974 quando foi enviada para os Estados-Unidos, um pouco antes da Revolução Islâmica iniciar a sua marcha depondo o regime autocrático de Reza Pahlavi. Neshat frequentava então a Universidade Berkeley na Califórnia e é a partir do estrangeiro que vai recebendo notícias sobre o processo de radicalização que a revolução vai ganhando no seu pais, facto que a impede de retornar ao ceio familiar. O seu regresso faz-se duas décadas mais tarde, tendo encontrado um país que lhe era estranho, vivendo então, um sentimento de duplo exílio. No seu país, encontra legiões de mulheres cobertas pelo chador segundo os preceitos impostos pela lei islâmica de 1985. São mulheres militarizadas, chamadas a combater pela revolução, tornando-se, na perspetiva da artista, peças de uma vontade coletiva que lhes nega qualquer individualidade. Armadas e cobertas de negro estas silhuetas femininas tiveram um grande impacto no imaginário da artista, passando a ser a principal fonte do seu trabalho artístico.

Shirin Neshat, Women of Allah, 1994-1997, fotografia

Na sua primeira série fotográfica de relevância internacional, Women of Allah, Neshat começa a fotografar-se cobrindo-se com o chador. Á composição são associadas armas, assim como textos do Corão inscritos nas únicas partes descobertas do seu corpo. O rosto e as mãos, o que é permtido estar descoberto, surge então como os lugares de constante inquirição e campo de trabalho por excelência. As imagens de Neshat, transformam-se assim, em versões das mensagens panfletárias do regime que apelam à participação da mulher na guerra santa ao mesmo tempo que as condenam à sua submissão e anulação.

A artista procura através dessas encenações fotográficas a recriação de uma realidade questionando as implicações físicas, emocionais e culturais a que estão sujeitas as mulheres do Irão. A sua fotografia, pelas suas características permite ao público uma certa proximidade com o real. São imagens ficcionais que demonstram o seu carácter construtivo que segunda a artista tem o poder de questionar uma outra ficção que sustenta o regime teocrático que tem por base uma reinterpretação abusiva da lei islâmica que visa a sujeição de parte da população. As encenações Shirin Neshat convocam um real, propondo passagens do Corão inscritas no corpos em contradição aberta com as interpretações fixadas pelas leis do Islão no Irão.

Para Sherin Neshat toda a obra de arte é uma arma política porque nasce de uma consciência do lugar do artista no mundo. O seu exílio instigado pela falta de liberdade que se vive no seu país faz com que o seu trabalho se refira frequentemente à tirania, a opressão e a injustiça política. Depois de Womens of Allah, Nesfat enfatiza esses mesmos temas em video-instalações. Turbulent (1998) Rapture (1999) e Fever (2000) foram os primeiros vídeos que realiza onde examina a questão do género e da sociedade, especialmente sobre os prisma das leis islâmicas que restringem a liberdade da mulher.

Em Turbulent (1998) põem em destaque a diferença performativa de um homem e de mulher. O homem canta para uma plateia só de homens que o aplaudem em reconhecimento da vivência de uma cultura popular própria, enquanto a mulher mais livre procura soltar-se das linhas melódicas da canção popular. Esta mulher improvisa perante uma plateia vazia mas, ainda assim, é como se a sua voz conseguisse quebrar o espaço confinado que lhe era reservado. Homem e mulher criam uma metáfora musical poderosa inerente aos papeis do género, poder cultural e injustiças praticadas pelo governo iraniano. Com este trabalho, mais do que ícones de opressão, as mulheres representadas por Neshat procuram ser indivíduos complexos com desejos e ambições.

Shirin Neshat, Rapture, 1999, vídeo

No conjunto o que esperamos das fotografias e vídeos de Shirin Neshat é uma abordagem a questão da liberdade individual sobre o ataque da opressão das ideologias sociais. Por isso o seu olhar ‘outsider’, crítico do impacto que o rigor da lei Islâmica tem sobre as mulheres iranianas no seu dia-a-dia torna-se novamente relevante.

texto de Francisco Vaz Fernandes para PARQ_76.pdf (parqmag.com)

Shirin Neshat, Rapture, 1999, vídeo