Afinal Havia Outro

texto por Francisco Vaz Fernandes

fotografia por Marcus Sabah

O Sérgio Silva, fadista e o Sérgio Onze Stylist, viveram durante anos como facetas opostas de uma mesma pessoa. Quem via um dos lados não percecionava o outro, como se tratassem de universos dispares, até ao momento que surgiu ”Nós” um álbum de fado. Então, pela primeira vez, Sérgio Onze, o stylist passou a a cantar fado assumindo assim uma versão multifacetada da personalidade, na certeza que em todos nós há sempre um outro. Pela primeira vez exploramos essa duplicidade do Sérgio que nestas páginas aparece à frente e atrás da camara.

Camisola Flávio Brandão, calças Asos Design, sapatos da produção

nos conhecemos há bastantes anos na área da moda, mas foi uma surpresa o facto de lançares um disco de fado. Como surgiu isso?

Para mim, é um pouco difícil responder porque estes dois mundos sempre fizeram parte da minha vida. Canto fado desde os 9 anos, todas as noites, em casas de fado. Gravar um disco foi apenas o culminar natural desse processo. Foi um caminho longo e ponderado, porque queria fazê-lo no momento certo, quando achasse que fazia sentido e tivesse as condições para apresentar ao mundo o meu “NÓS”.

Na verdade, não consigo imaginar outra forma de ser. Não me conheço de outra maneira. Cantar fado é a melhor forma que tenho de me encontrar, de me descobrir, de solidificar, de atar e desatar as coisas na vida. Sei que foi uma surpresa para muitas pessoas da área da moda, porque não conheciam este meu lado. Não que o escondesse, mas simplesmente não estava tão exposto como está agora.

Fato e camisa Luís Carvalho

Porque razão estes dois universos foram mantidos separados durante tanto tempo?

Foi uma coisa muito natural, não foi intencional. Acabavam por não se cruzar tanto assim. Claro que havia alguns fatores que ajudavam a manter essa distância, como o facto de eu não usar o mesmo nome como fadista e como stylist — coisa que agora já faço. Mas acho que isso também se deve ao facto de estes dois universos viverem em lugares e contextos diferentes. Tocam-se, mas são mundos distintos.

E porquê agora seres o Sérgio Onze nas suas múltiplas facetas?

Muito honestamente, porque achei que já não fazia sentido manter essa separação. Eu sou só um: fadista, stylist, e tantas outras coisas que fazem parte de quem sou. Mas sou sempre o mesmo.

Camisa e calças Lidija Kolovrat

O facto de teres lançado um álbum implica que abraçaste o lado profissional do espetáculo? Isso significa que vamos perder o stylist?

O fado é algo a que estou sempre dedicado, faz parte de quem eu sou. Não consigo ser de outra maneira. O lançamento do disco trouxe, felizmente, um lado mais presente de espetáculos, concertos e trabalho nesse sentido. Mas o styling vai continuar, claro. É apenas outra forma de contar histórias, através da roupa. São dois mundos meus.

No mundo do espetáculo, onde a construção da imagem é importante, em que medida o stylist influenciou a tua imagem final?

Acredito que foi uma coisa muito natural. E, honestamente, não acredito muito nessa ideia de “criar a imagem de um artista”. Tem de ser genuíno. Ou é, ou não é. Claro que pode haver um cuidado, uma definição melhor, mas tem de estar sempre alinhado com quem se é. Eu sou um fadista deste tempo, que por acaso também é stylist, e visto-me assim porque é quem eu sou.

Look total Ernest W Baker

É possível falar de ti através da tua imagem. O que procura transmitir essa imagem?

Procura transmitir isso mesmo: verdade. Sou eu, por inteiro, ali. A imagem, o cantar, o que digo em concerto é um lugar muito vulnerável, porque é honesto. Juntar estes elementos é o que me define.

A tua imagem parece provocar a imagem clássica do homem fadista. É intencional?

Não penso muito nisso, na verdade. Ou melhor, penso na minha imagem, claro que sim, mas não a penso dessa forma. Acho que a minha imagem, como a de qualquer pessoa — ou, pelo menos, deveria ser assim — deve ser uma extensão da sua personalidade. E é isso que tento fazer: é parte de quem sou. Na verdade, acho que tem muito de fado e bebo muito dos clássicos, mas transporto isso para mim e para o meu tempo.

Fato Asos Design, camisa e botas Ernest W. Baker

Alguma vez possas ter sentido alguma descriminação por estares no mundo da moda muitas vezes preconceituosamente pensada como fútil?

Como disse anteriormente, durante muito tempo, esses mundos não se cruzavam assim tanto. Depois, no início desse processo, posso dizer que senti alguma “ligeireza” no assunto, mas penso que de ambas as partes. Contudo, acredito que isso acontecia simplesmente porque as pessoas não conheciam a minha forte dedicação a ambos os campos. É normal. Preconceito, não, porque também não permito que isso aconteça. Respeito muito os dois mundos e sou um defensor convicto quando é necessário.

Estando tanto tempo no mundo do fado teres conseguido fazer um álbum teu representa o quê?

Representa uma grande conquista. Esperei pelo tempo que considerei certo, e isso envolve muitos fatores: amadurecimento pessoal e profissional, decidir o que quero dizer e como. O mundo em que vivo, as minhas lutas, os meus NÓS. Só assim faz sentido para mim. Anteriormente, senti que alguns desses fatores não estavam onde eu queria que estivessem. Na verdade, esta ideia é algo utópica, pois não há um “tempo certo”. Foi uma questão de feeling. Poderia ter gravado um disco muito antes — existiram oportunidades. Mas não me arrependo de nada. Estou muito contente com esta minha primeira página. É como resumir tudo o que tenho feito até agora num só objeto, o que não é nada fácil.

Total look Luís Carvalho

Como foi o processo?

Foi intenso. É a primeira palavra que me ocorre. Digo isto porque, apesar deste processo ter começado a ganhar vida há algum tempo, antes da pandemia — que o interrompeu — ainda bem que isso aconteceu, pois decidi regravar tudo o que estava a fazer. Numa primeira fase, comecei este projeto sozinho, o que foi uma grande aventura. Mas foi ótimo, porque serviu como uma espécie de maquete para o que queria criar.

Por sorte, encontrei a Carminho na casa de fados onde canto habitualmente, a Bela. Ela foi de uma generosidade incrível. Quis saber mais sobre mim, sobre as minhas ambições, e transmitiu-me ensinamentos e partilhas fundamentais. Nesse momento, decidi começar de novo, pois sabia que ainda não estava onde queria. A Carminho conseguiu um apoio do Museu do Fado, o que foi extraordinário, e foi aí que finalmente comecei a trabalhar a sério neste primeiro disco.

Digo que foi intenso porque, a partir daí, foi necessário juntar muitas peças que se tinham acumulado e estavam dispersas: temas, ideias, estúdios, produção, sonoridades, fados — tudo com prazos e orçamento limitados. Ao mesmo tempo, foi uma viagem incrível. Fez-me questionar muitas coisas e foi uma grande viagem interna. Aos poucos, as coisas foram ganhando vida, com os produtores e músicos. É uma sensação mágica.

Total Look Lidija Kolovrat

Como foi trabalhar na produção com dois polos tão diferentes como podem ser o Agir e o Ricardo Ribeiro?

Foi desafiante, mas muito gratificante. O que mais me atraiu nesta junção foi precisamente o facto de parecer algo pouco provável. E muitas vezes é nesses lugares inesperados que as coisas acontecem. Trabalhar com o Ricardo foi um privilégio. Nunca imaginaria que um dia isso seria possível. Só tenho a agradecer por este legado, que sinto ter-me sido transmitido. O Ricardo é um mestre, um fadista que admiro muito e há muitos anos. Ele trouxe-me essa casa e elevou-a, que era exatamente o que eu pretendia — o fado.

O Agir, cuja entrada na produção foi uma sugestão do Ricardo, trouxe-me o outro lado que eu procurava. Queria que, de vez em quando, o “barco balançasse”. Ou seja, não queria transformar o fado noutra coisa, mas precisava que, às vezes, outro vento soprasse. Isso faz parte de quem sou e daquilo que me rodeia. Ele trouxe algumas intervenções criativas que o fado tradicional não possui, respeitando-o e sem o transformar noutra coisa.

Como é que chegaram a seleção dos temas? Tinhas uma ideia já muito definida ou os temas foram surgindo durante o processo.

Eu fui fazendo uma seleção de poemas que gosto muito. Fui juntando ao longo do tempo, desde poetas populares a contemporâneos. Alguns fados que sempre gostei também fizeram parte. O processo passa sempre muito pela palavra. Depois fui caminhando e contando a história. Há um fio condutor. São histórias que me dizem muito. Os temas originais que fui introduzindo e que me escreveram eram as peças que faltavam.

Camisa e calças Lidija Kolovrat

Contas também temas do Conan Osiris e a Joana Espadinha, foram nomes que procuraste ou fazem parte do teu círculos de amigos e são cúmplices do teu processo de afirmação no meio musical mais em geral?

Todas essas colaborações aconteceram de forma muito natural e um tanto aleatória. Claro que sou fã do trabalho de ambos. Conheci a Joana quando trabalhei como stylist para o novo disco dela. Já era um grande fã do trabalho da Joana, mas eu, Sérgio stylist, nunca pensei em falar sobre o meu trabalho enquanto fadista. Poderia parecer que estava a aproveitar-me da situação. Mas, em conversa, apercebi-me de que a Joana já sabia que eu cantava, e também percebi que a Carminho tinha sido uma pessoa importante para ambos — a Joana até chegou a escrever alguns temas para ela. Um dia, a Joana disse-me: “Gostava muito de escrever alguma coisa para ti, se tiveres vontade”, e eu respondi: “Claro que sim, tenho muita vontade.” Ainda bem que isto aconteceu. Foi curioso ela ter-me escrito o tema “Amanhã”, porque, na altura, eu estava numa fase complicada, com alguns problemas de ansiedade, e o tema acabou por refletir um pouco disso, sem ela própria saber.

Com o CONAN talvez tenha sido o processo mais divertido de todos. Não o conhecia pessoalmente, mas gostava muito do trabalho dele. Sempre achei o estilo dele irreverente e muito interessante. Um dia, fui ver o concerto de apresentação da Rita Vian no Lux com uns amigos, e ela cantou um tema escrito pelo CONAN que começa com “Eu já sabia que queria / Ficar até nascer o dia”. Os meus amigos começaram a brincar e a dizer: “Sérgio, esta música podia ser tua”, pois sou sempre o último a querer sair das festas. Achei graça àquilo e saí de lá com a ideia de “quero um tema do CONAN”. Pensei que fosse daquelas ideias que desapareceriam no dia seguinte, mas houve algo que me fez avançar. Falei com um amigo em comum para ver se poderia contactar o CONAN, e ele respondeu-me muito rapidamente. Para minha surpresa, ele já me tinha ouvido cantar e disse que seria um enorme gosto escrever um tema para mim. Quando ele me perguntou sobre o tema que eu gostaria que ele abordasse, percebi que ainda não tinha nenhum tema que falasse sobre a dualidade entre ser stylist e fadista. Disse-lhe: “Gostava de falar sobre isso. Já vesti tanta gente, acho que agora é a vez de me vestir a mim próprio e apresentar-me ao mundo.” O CONAN escreveu um tema que encaixou na perfeição e que veio a chamar-se “Sapatinhos”. É quase uma metáfora: procurar sempre um lugar de leveza mesmo nas situações mais difíceis. Tornou-se algo muito autobiográfico.

Sapatos Ernest W. Baker

Achas que ainda há barreiras entre os géneros musicais e apesar do fado estar a aparecer nos horários nobres da televisão no mundo do espetáculo ainda é guetizado?

Acho extremamente necessário haver essa abertura para a experimentação. No meu caso, tenho muito cuidado e respeito pela forma como apresento e nomeio as coisas. Ou seja, o fado — tradicional — é fado, e tem uma forma muito específica de o ser. Não o podemos desvirtuar nesse sentido. Isto é, não podemos chamar fado a algo que não o é. Sinto que precisamos de ter mais esse cuidado para que as pessoas não fiquem baralhadas e para que não se percam elementos importantes que caracterizam este estilo musical. Por exemplo, não podemos chamar fado a uma fusão com eletrónica só porque tem uma guitarra portuguesa pelo meio. No meu álbum, não digo que a faixa “Sapatinhos” é um fado, porque não é, ponto. Sim, está dentro de um universo fadista, porque quando canto sou fadista, mas não posso dizer que aquilo é fado. Tudo depende da forma como apresentamos as coisas.

Sou, no entanto, super recetivo a experimentar coisas diferentes, até mesmo a ter artistas contemporâneos a escrever para o fado tradicional, porque isso é possível e, além disso, acho uma escolha muito interessante — pegar em músicas antigas e dar-lhes uma nova história. Mas aqui o ponto é que certas fusões não devem ser chamadas de fado. Na verdade, acho que alguns artistas fazem muito isso e, se calhar, não têm um único fado no disco. Talvez seja uma fusão musical ou outro estilo de música urbana portuguesa. Será outra coisa que não fado.

Fato Twisted Tailor, camisa Ernest W. Baker

Estiveste no cartaz do Caixa Alfama, o que isso representou para ti?

Foi muito bom. Nunca tinha participado no festival, embora fosse um espetador assíduo. Levar o meu primeiro disco e poder apresentá-lo nesse núcleo deixou-me muito feliz.

14- Onde é que te vamos poder ouvir nos próximos tempos?

Continuo a cantar nas casas de fado onde sou fadista residente: Parreirinha de Alfama, O Corrido e a Tasca da Bela. Em breve, terei algumas novidades para apresentar, incluindo novos concertos e outras surpresas a caminho.

texto publicado em PARQ_81.pdf

Camisa e gravata Luis Carvalho, calças Asos Design, casaco Ernest W. Baker

Fotografia: Marcus Sabah

Styling: Sérgio Onze

Make up Artist: Beatriz Texugo

Vídeo: Sofia Rodrigues