com o Rafael Morais
Texto por Alex Couto @escritorfamoso
Fotografia por Maria Rita @mariarita.photo
O actor português Rafael Morais está cada vez mais conhecido, mas continua a trazer-nos uma sensação de up and coming, talvez pela sua aptidão camaleónica para as diferentes personagens que interpreta. A sua dedicação ao cinema português, onde já trabalhou com os maiores colossos de diferentes gerações de grandes realizadores portugueses (como João Canijo, Marco Martins, Tiago Guedes e Pedro Cabeleira), elevou o seu perfil ao ponto de o associarmos a obras-primas inesquecíveis, ao mesmo tempo que lhe trouxe papéis de relevo em grandes produções da Netflix, como White Lines, Glória e Rabo de Peixe.
Nesta entrevista falamos com o actor acerca dos seus projectos mais recentes, onde destacamos a estreia da série Irreversível de Bruno Gascon (já a ser transmitida pela RTP1 e disponível na RTP Play), assim como a muito aguardada estreia em Portugal do filme A Cup of Coffee and New Shoes On (Um Café e Um Par de Sapatos Novos). Este filme de Gentian Koçi, foi a obra seleccionada para candidatura aos Óscares por parte da Albânia em 2023 e pela qual Rafael Morais foi distinguido com prémio de Melhor Actor Principal no PriFest.
Rafael Morais é um conversador nato, habituado a falar sobre a sua prática com um nível de detalhe apaixonante. Recortado pela silhueta dos seus caracóis e do seu casaco de cabedal, a nossa conversa prolongou-se durante reflexões que aproximaram Lisboa de Los Angeles, mas sempre centradas numa carreira cujos pontos altos começam a ter algo de miradouro.
A oportunidade de perceber como a arte não é só aquilo que ele faz, mas também é uma constante fonte de inspiração onde continua a ir buscar forças para se continuar a desafiar é inspiradora para nós e acreditamos que será uma leitura memorável para todos.
Começamos a falar com Rafael Morais acerca dos seus novos projetos e dos desafios que lhe trouxeram como ator dedicado à sua arte.
Então, a série Irreversível marca a minha segunda colaboração com o Gáscon. Fiz o filme “Pátria”, que já estreou nas salas e do qual vai surgir também uma série intitulada “Evadidos”, que vai estrear na RTP no próximo ano. Gosto de voltar a colaborar com realizadores e actores em diferentes projectos, porque há desde logo uma abertura e facilidade de comunicação pelo facto de já termos trabalhado juntos e isso facilita todo o processo criativo. Tenho trabalhado mais em cinema em Portugal. Depois das séries internacionais que fiz, este projecto marca o meu início, a nível de estreia em séries nacionais.
Posso dizer que é um thriller com tons nórdicos, o que me entusiasmou logo na primeira leitura do argumento. Acho que os thrillers de séries nórdicas são a referência do género a nível global. A minha personagem é o Detetive Pedro Sousa, que vai investigar o homicídio de uma jovem que aparece morta na praia e que, por se tratar de uma adolescente e o caso envolver menores, vê-se obrigado a colaborar com a psicóloga Júlia, interpretada pela Margarida VilaNova, para o ajudar no caso. Este crime vai levar a que eles se voltem reconectar, depois de terem tido um passado romântico, o que vai de certa forma dificultar todo o processo de resolução do caso.
Foi uma personagem interessante de explorar, diferente. A complexidade emocional desta personagem atraiu-me de imediato – um homem que não só está à procura de respostas para resolver um homicídio mas que está também à procura de si mesmo e de se redimir.
Então, de certa forma, isso trouxe também um desafio técnico para ti?
Sim, diferente do que tenho feito e muito diferente da personagem que fiz no “Pátria”, que era um gajo imprevisível, violento, extremamente agressivo.
Neste caso, o que me atraiu foi o facto de este detective ser um homem que quer estar em controlo total, parece que está sempre com uma máscara, com uma carapaça, para não mostrar quem ele realmente é, não só por motivos profissionais, porque é detetive, mas também porque carrega muita mágoa.
Acho que o mais interessante para mim de explorar foi precisamente construir todo um passado e toda uma vida interior e emocional da personagem. A obsessão que ele tem com a sua profissão por exemplo é, de certa forma, uma fuga inconsciente que ele criou para evitar ter de se confrontar com ele próprio e os demónios que o perseguem. Um indivíduo pragmático, racional e duro à superfície mas extremamente frágil, solitário e fraturado no interior. As dualidades humanas interessam-me imenso.
Quis que essa dualidade estivesse não só presente a nível emocional mas que se materializasse de uma forma física também. Que se manifestasse numa constante tensão muscular, por exemplo. Quer seja na maneira como ele se expressa fisicamente, com poucos gestos, por exemplo, quer seja na forma como fala.
Isto surgiu com as entrevistas que fiz a uma inspectora da Policia Judiciaria, na fase de pesquisa. Apercebi-me que ela tinha uma tensão física constante, que afectava a sua maneira de falar. E eu achei isso muito interessante e quis trazêlo para a personagem. Conversar com ela ajudou-me também a ter uma ideia mais clara de como funciona o sistema policial em Portugal, muito diferente do que estamos habituados a ver em filme e séries americanas, por exemplo.
Foi essencial também para tentar perceber qual o impacto emocional e psicológico inerentes a estas profissões. Como é que eles levam, ou não, para casa o peso do trabalho, como é que se ela se deparasse com um crime destes, sobretudo algo horrendo como neste caso, como acontece na série, como é que ela lidaria com isso.
Trouxeste essa comunicação física, não é?
Uma comunicação não verbal e limitativa. Nesta personagem fazia sentido, como ele parece estar sempre a mascarar o que está a sentir e quem realmente é. Primeiro que tudo, porque está a interrogar pessoas que são suspeitas, há uma frieza necessária nesta profissão. E, segundo, porque há esta relação pendente e por resolver com a psicóloga. Ele quer tentar manter o profissionalismo nesta colaboração, o que é difícil, tendo em conta o passado amoroso entre os dois. Achei esse conflito muito interessante também.
Outra coisa que adorei logo no argumento, que eu achei muito fixe, é não vermos a casa dele. Vemos a casa de quase todas as personagens, onde elas habitam, mas do inspetor Sousa não se vê. E eu acho que isso é fixe, porque basicamente só o vemos no trabalho, no escritório, que é, na verdade, a sua casa. Deu-me asas para imaginar o que será a vida dele fora do trabalho.
Interrompo o Rafael Morais para lhe dizer que esta personagem me relembra da obra “A Balada da Praia dos Cães”, do José Cardoso Pires, em que a figura do detetive também é uma personagem muito soturna Pergunto-lhe se o Detective Sousa tem algum animal de estimação, tal como a iguana do Elias Santana?
É muito giro que digas isso. Porque foi precisamente o que eu imaginei. Primeiro que tudo imaginei que o gajo é um solitário. Não acho que ele vá a dates, não acho que ele esteja ativamente à procura de amor, por exemplo.
Acho que esta relação com a Júlia foi uma coisa que aconteceu e que o marcou bastante e que ele sabe que não vai voltar a acontecer, da mesma forma. E imagina, inicialmente até sugeri ao Bruno dar-lhe um animal estimação, para acentuar ainda mais a sua dificuldade de socializar com outros seres humanos Não chegou a acontecer, mas há um momento na série em que eu estou a tomar conta do aquário da Júlia, dos peixes de estimação dela, quis trazer essa sensibilidade para a personagem. Não queria que fosse o típico detective que estamos habituados a ver na maioria das series deste género.
Eu imagino-o na casa dele, a beber, sozinho, mas não acho que seja um alcoólico. Acho que é solitário e acho que é obcecado pelo trabalho, acima de tudo.
No argumento original, quando a personagem é apresentada pela primeira vez, vemo-lo a correr sozinho, o que achei muito fixe, mas pareceu-me demasiado másculo e estilizado e portanto sugeri ao Gascon que ele tivesse um inalador para a asma, para dar-lhe logo um lado de fragilidade desde o inicio. Inalador que vai usando, em momentos mais stressantes ao longo da serie.
A tua carreira tem sido marcada por colaborações com realizadores de grande prestígio no universo do cinema português, que cada vez recebem mais atenção internacional. E o díptico “Mal Viver/Viver Mal” venceu o Urso de Prata em Berlim. Achas que nos podes guiar acerca da diferença entre fazer cinema e televisão?
Mesmo dentro do cinema, cada realizador trabalha de forma muito distinta. O João Canijo gosta, é mesmo a maneira de trabalhar dele, de passar muitos meses a entrevistar os atores, a reescrever o argumento, tendo em conta o que os atores trazem para a mesa, é o método dele e um luxo raro para os actores. Mas para a televisão não é normal ter o tempo de preparação que o Canijo investe. Isso é o mais normal aqui ou lá fora, não teres esse tipo de tempo para construir a personagem ou o argumento com os atores, é uma excepção. E nem todos os projectos podem ou devem ser feitos assim.
Eu gosto, na maior parte dos casos, não todos, mas quase todos, de criar e imaginar um passado para a personagem. Portanto, parte do processo para o Irreversível foi criar o passado desta personagem, foi a relação com ela, o que aconteceu antes, e o historial todo do porquê da solidão dele, etc.
É o momento para perguntar a Rafael Morais se essa experiência foi radicalmente diferente de trabalhar em A Cup of Coffee and New Shoes On, filme onde Rafael Morais foi distinguido com o prémio de Melho Actor Principal no Festival de Cinema PriFest.
Primeiro que tudo, estou muito contente de finalmente estrear o filme Portugal, depois da longa vida que o filme teve em festivais de cinema internacionais, que é incrível, e no qual ganhou vários prémios, e estou muito feliz por estrear nas salas de cinema. É um filme que acho que deve mesmo ser visto em sala.
O convite surgiu através de uma mensagem que o Gentian Koçi, que é o realizador, me mandou depois de fazer a série White Lines, a dizer que estava a procura dos protagonistas para este filme e que estava a sofrer para os encontrar, porque é uma história muito peculiar e sensível, é muito livremente baseada numa história verídica de dois irmãos belgas que são surdos e que descobrem que têm uma condição genética em que vão perder a visão.
E foi um dos primeiros casos de eutanásia na Bélgica. Os únicos pedidos deles, dos dois, antes da eutanásia, foi um café juntos e um par de sapatos novos. E portanto, a história é totalmente criada à base disso, mas é livremente baseada. Apaixonei-me pelo argumento e adorei a primeira longa que ele fez, “Daybreak”. Soube desde logo que tinha algo muito especial entre mãos e que queria fazer este filme, pela qualidade do argumento e, obviamente, pelo desafio gigantesco que seria interpretar esta personagem. Foi uma longa fase de castings até ele formalizar o convite.
Tu tens um processo que guia o teu trabalho como actor? Ou preferes abordar diferentes filmes de formas igualmente diferentes?
Eu não tenho um processo específico enquanto ator. Acho que isso pode se muito limitador. Cada projecto, argumento, realizador e personagem pedem uma abordagem diferente. E eu gosto de começar do zero, sem ideias preconcebidas, como uma tela em branco. Estudei na Stella Adler, estudei na Escola de Teatro de Cascais, estudei com a Ivana Chubbuck que é coach privada de estúdios e de actores como o Brad Pitt ou a Charlize Theron. Estudei em várias escolas, com vários métodos. E não adoptei nenhum método específico ou uma fórmula, porque acho que isso é contraproducente. O instinto foi e continua a ser a minha bússola.
Mas este filme foi a primeira vez em que eu, entre aspas, fui mais método. Acho que hoje em dia a ideia de Method Acting está tão banalizada que até tenho receio de mencionar, mas foi absolutamente necessário, porque eu não sei o que é não poder falar, eu não sei o que é não poder ver. Este filme exigiu de mim uma pesquisa e preparação muito mais profunda do que qualquer outro projecto que fiz até hoje.
Consegues contar-nos como foi esse mergulho num processo mais próximo do method acting?
Em primeiro lugar, tive oito meses de aulas de língua gestual, albanesa, porque é diferente de país para país, algo que não sabia. Depois tivemos uma fase de ensaios de dois meses e meio antes de filmar na Albânia, com o elenco principal, onde vivemos juntos na mesma casa, como as personagens e na maior parte do tempo, em personagem, durante toda a fase de ensaios e durante toda a rodagem.
Nesses meses que passei na Albania antes da rodagem, pedi ao realizador para me arranjar uma venda, tipo uns óculos de ski mas que tapassem os meus olhos totalmente, e andei durante dias vendado pela cidade de Tirana, fui jantar fora a restaurantes vendado, e há um vídeo engraçado, em que estou a comer num restaurante, com os olhos vendados, e estou a comer com o garfo do avesso, sem me aperceber. Saí do hotel até ao restaurante, a tocar em tudo, agarrado às paredes da cidade. Uma coisa é imaginar, outra coisa é realmente experienciar. Trabalhei também vários dias numa carpintaria, a cortar madeira, porque é o trabalho da personagem no filme e queria que me fosse natural e orgânico antes de começar as filmagens
A primeira coisa que pedi ao realizador e produtora foi que tivéssemos uma pessoa da Associação de Surdos da Albânia não só presente nos ensaios, mas em todos os dias da rodagem, quis garantir que esta comunidade fosse representada de forma honesta e tão realista quanto possível. Essa ajuda foi essencial e não o teria feito doutra forma.
E o maior desafio nem foram as aulas de língua gestual, que era algo essencial porque o meu personagem já nasceu surdo, o mais difícil foi “explorar” a cegueira, sobretudo transmitir fisicamente, para a câmara essa cegueira. No caso do Agim, a minha personagem, acompanhamos todo o arco da cegueira, desde o primeiro sintoma até à cegueira total. Foi extremamente difícil encontrar esse equilíbrio da evolução da doença, as nuances todas. Física e emocionalmente, claro .
Foi incrível e muito duro ao mesmo tempo, tive entrevistas e conversas e jantares com o pessoal da Albânia e de instituições de cegos e surdos e isso tornou-me mais empático e, acima de tudo, fiquei transtornado e muito enraivecido pelas injustiças e desigualdades totalmente desnecessárias que estes indivíduos são obrigados a suportar.
Porque é que não aprendemos a língua gestual nas escolas? Porque é que não é mandatório, porque é que não faz parte do currículo escolar aprender? Porque as pessoas que eu conheci, todas me diziam a mesma coisa: “eu vou a um bar, queria ir beber um copo e não tenho como comunicar com outra pessoa.” Não faz sentido nenhum, a maioria das pessoas não percebe o quão doloroso é não ter maneira de comunicar com os outros, pura e simplesmente porque a sociedade não o permite e para mim isso não faz sentido absolutamente nenhum e só demonstra o quão individualista é a sociedade em que vivemos.
Ganhaste uma ligação maior a este tema da acessibilidade com a tua dedicação a este personagem e a este filme?
Sim, tornei-me muito próximo e criei uma grande intimidade com as várias pessoas que conheci neste longo processo de pesquisa, jantámos juntos, saímos à noite. Foi incrível ter tido este tempo para os conhecer como deve ser. E, entretanto, perguntei a ambos, portanto a um indivíduo cego, e agora se tu descobrisses que vais ficar surdo, como é que irias reagir? Perguntei o mesmo uma pessoa surda: “E agora, se descobrisses amanhã que vais ficar cego?” houve sempre assim uma pausa comum antes de responderem, fico todo arrepiado só de pensar nisso. Houve uma pausa semelhante de duração em todos os casos e a resposta foi sempre a mesma: “Preferia morrer.”
Imagina, não podes ver, não podes ouvir nem falar. Portanto, se tu és cego, ao menos consegues falar, consegues ouvir, há uma forma de comunicação. Se tu és surdo, consegues ver, consegues escrever, consegues ler, consegues comunicar, ter uma vida social, percebes? Agora, não tendo essas duas coisas, só tens o tacto e o olfacto. Estás enfiado numa caixa escura e essa caixa é o teu corpo. És um prisioneiro de ti mesmo. E posso-te dizer que isso foi um dos maiores desafios, enquanto ator, que eu tive. Fui a sítios mais dark, profundos e existenciais que nunca tinha ido antes, e ainda bem que tive a preparação que o realizador me permitiu, porque era impossível, de outra forma. Era impossível. Nem acho que teria aceite fazer esta personagem sem essas condições. Se não tivesse tido esta preparação, teria sido impossível.
Achas que a arte continua a ser uma das melhores formas que temos de prestar atenção ao outro, de empatizar com as suas dores?
Sim, para conhecer uma realidade que não é tua, que é necessária. Para conhecer esta, tão distante da minha, foi essencial, passar dias sem falar, sem dizer nada, sem comunicar com o realizador verbalmente, sem falar com ninguém. Passei dias com bloqueadores de som nos ouvidos, sem conseguir ouvir nada, e passei dias a andar vendado, em casa e na rua. Foi um processo muito imersivo e duro, muito duro, mas extremamente enriquecedor. E isto é só a superfície do que estas pessoas passam, não é? Mas eu precisava de ter uma ideia mais ou menos clara, tentar ir o mais fundo possível.
Também acho que a maneira como o Gentian Koçi, o realizador, filmou, e a ideia que ele tinha para o filme era, logo desde o inicio, muito crua, até nos movimentos de câmera, por exemplo. Eu acho que esse trabalho, assim como o design de áudio do filme é incrível, porque joga com isso, os sons são exagerados, por exemplo, o som neste filme é uma personagem muito importante.
O filme abre comigo, na cozinha a lavar a louça, e os sons são exagerados par acentuar, sublinhar a minha condição. Esta pessoa não ouve, logo, não tem noção do barulho que está a fazer. E foi muito gratificante aperceber-me dess cuidado no pormenor também na realização e pós-produção do filme
O filme trouxe-te uma crítica incrível na revista norte-americana Variety — foi um motivo de orgulho para ti?
Sim, obviamente. Ter a Variety a dizer que a minha prestação foi uma das melhores do ano foi uma surpresa incrível. Mas mais que as criticas e os prémios, o que me enriquece ainda mais é a resposta que o público tem tido ao filme. A maneira como o filme lhes toca e como as pessoas saem emocionadas e tocadas da sala, a maior parte sem conseguir falar. Isso para mim não tem preço. Para nós atores, nesta profissão tão instável, tão insegura, às vezes tão injusta, é bom ter essa palmadinha nas costas, dos prémios e boas criticas, às vezes, é importante, é bom, no meio de tanta incerteza ser reconhecido pelo trabalho e entrega que dás às personagens que interpretas, veres o teu esforço reconhecido, isso e óptimo.
Claramente tu és um actor que sente a arte, digamos assim. Tens interesses artísticos além do cinema e da televisão?
Pintura, música, fotografia, tudo. São áreas que o cinema incorpora. Tudo ligado. Gosto de arranjar sempre alguma coisa, uma ligação para mim quando começo a atirar-me a uma personagem, uma obsessão ligada com a arte. Na altura de Como Desenhar um Círculo Perfeito, tinha literalmente uma casa, um estúdio que arrendei no Bairro Alto, cheio de fotos impressas, e escrevia um diário de personagem em personagem, a desenhar, a escrever poemas para a minha irmã do filme. No caso do Cup of Coffee, isto para falar de outras artes, a grande referência foi o Francis Bacon, que não estava diretamente ligado, mas havia qualquer coisa no movimento da pintura dele, que identifiquei nesta personagem.
E eu, enquanto estou a trabalhar numa personagem, tento, sem sombra de dúvida, obcecar-me e ligar outros tipos de arte. Faço playlist de música para uma personagem, isso é uma coisa que eu faço sempre, tento ver filmes ou documentários relacionados com a personagem ou com o mood do filme Portanto sim, a arte sempre esteve presente e está sempre presente de uma forma ou outra, é a minha paixão.
Mas o cinema é a tua principal paixão, certo? Li numa entrevista do Tiago Manaia para a Máxima que começaste a ver filmes do Bertolucci com a tua mãe.
Eu tenho uma obsessão com o cinema desde muito novo. A única coisa que eu quis ser antes de ser ator foi astronauta, quando tinha 5 anos, e desde aí sempre soube que queria ser actor. É uma benção e uma maldição, acho, saber logo desde muito cedo o que queres fazer da vida. Uma benção porque tens um objectivo delineado, uma maldição porque, pelo menos para mim, não tenho outra escolha.
E a primeira obsessão era a obsessão de ver filmes — três ou quatro filmes por dia, do videoclube, faltar às aulas para ver filmes. E a obsessão acho que é um palavra que está muito presente, mesmo para mim enquanto ator. Sinto a necessidade, enquanto ator, de estar obcecado com a personagem que estou a fazer.
Acho que surgiu de uma coisa menos pensada, mais inconsciente, que foi o divórcio dos meus pais. Os meus pais divorciaram-se e foi muito duro, porque passei da cidade, porque estávamos em Vila Nova de Gaia numa turma com 20 alunos, para a terra da minha avó e para uma Telescola — era uma das últimas escolas à distância no país. Passar da cidade para uma aldeia foi muito duro, não só por causa do divórcio dos meus pais, que na altura foi muito difícil para mim perceber o que é que estava a acontecer. Passar de uma turma de 20 alunos para uma turma de 6 ou 7 alunos… Portanto, nunca me encaixei, sentia-me quase um alien naquela aldeia
Depois fui para a Covilhã, onde a minha mãe arranjou trabalho. Não me habituei e não me encaixei lá também, mas a paixão pelo cinema começou a explodir, porque tinha acesso a um videoclube e tinha acesso ao cinema, coisas que na aldeia não tinha.
Lembro-me do quote do Tarantino: “When people ask me if I went to film school I tell them, ‘no, I went to films.’” Falas-me sobre a diferença de realidade entre a tua experiência em Los Angeles e a nossa realidade nacional?
Estive em LA e sei perfeitamente que o sofrimento de ser artista e ator é igual, mas a diferença é manter e ter um nível de vida, uma qualidade de vida, segurança financeira, que cá em Portugal, enquanto ator, é muito, muito complicado.
Nos Estados Unidos, onde tenho vários amigos, por muito que não estejam a fazer projetos interessantes como eu estou, e eu não trocaria o que estou a fazer por isso, mas a nível financeiro tu consegues fazer uma vida como um working actor em LA, fazes um anúncio e estás bem durante um ano, fazes um papel pequeno numa série, ou protagonismo numa série e estás fixe durante 10 anos só com residuals.
Em Portugal isso não existe, é quase como um recomeço cada vez que acabas um projeto, mas pronto… Não trocaria isto por nada!
Lembro-me da tua citação em que dizes que há um “Hunger Games” nas Artes em Portugal.
Exato, é uma consequência de sermos pequenos, não é intencional, mas falta união. Por exemplo, a greve que houve há pouco tempo nos Estados Unidos dos argumentistas e dos atores, acho que em Portugal seria muito difícil isso acontecer. Acho que há uma competição natural, porque o mercado é tão pequeno, há tão pouco trabalho que é uma competição inata, infelizmente, que nos vira uns contra os outros, quando na verdade nos devíamos unir, mas a realidade é esta, a que está toda a gente a travar. A realidade é survival.
Há poucos projetos que são financiados, não há investimento privado, agora talvez comece a haver um bocadinho, mas não é diferente — produz-se pouco e isto faz com que a indústria se fragmente, não haja uma união entre realizadores, entre atores, entre agentes, entre todos. É cada um a puxar para o seu lado, e isso é pena, mas é um resultado das nossas condições, não é?
Por exemplo, acho que nos falta um sindicato para os atores, que nos proteja, que alguns técnicos já têm. E estou a falar de coisas mínimas, valores mínimos, tendo em conta o orçamento de certos projetos. Juntos, porque isto é o faroeste cá, infelizmente, porque atrás de ti há cem actores que vão fazer o teu trabalho por metade do preço, até valores que são criminais, quase escravidão.
Obviamente, e eu não posso julgar, porque também a verdade é que precisas de trabalho para trabalhar e para fazer novo trabalho, e acho que é uma bola de neve que ainda não ultrapassámos que nos faz estar presos neste ciclo de injustiça
Quero falar da importância da beleza para ti. Acho que tu és uma pessoa que por um lado admiras muito a beleza, mas por outro lado, ainda há pouco falavas do Bacon que, para mim, é um bom exemplo de anti-beleza.
Há muita beleza no grotesco. Acho que a beleza é uma coisa subjetiva. E há esta ideia universal, global, whatever, que nos é impingida, está agora a mudar com as novas tendências sociais. Para mostrar uma ideia geral do que é a beleza, acho que é totalmente criada pela sociedade capitalista em que vivemos. Não há um ideal de beleza, por muito que nos tentem vender essa ideia nos anúncios de moda e numa obsessão por cosmética. O ser humano inclui o falhanço, o triste e o feio. Isso é belo, é ser humano. E isso atrai-me imenso.
Talvez seja algo esotérico, mas a beleza, para mim, é o que nos torna humanos. Acredito que há uma ligação entre todos os seres, humanos ou não, mas especialmente humanos. Isto pode ser algo universal, que nos liga. Acho que fazemos parte de um todo que não temos perfeita noção do que é, que se há, talvez nunca iremos ter. Acho que nós somos uma célula, nós a nível global de humanidade, somos uma célula, uma parte ínfima de uma coisa muito maior.
Por muito que te continuem a considerar up and coming, o que é que tens a partilhar com quem sonhe com esta carreira? O que é que tu achas que podes dizer que seja valioso?
É uma pergunta difícil. E há cada vez mais jovens a quererem envergar para esta profissão. O mercado está totalmente saturado, aqui ou em qualquer lado E tendo em conta o que em Portugal se produz, a discrepância ainda é maior.
O único conselho que eu acho que é justo dar e que foi o que eu ouvi de algumas pessoas e que queria ter ouvido de outras, foi para não desistir.
Acho que é necessário ter uma obsessão. Ter uma necessidade de envergar pelas artes. Para ser ator ou o que for. E eu acho que tem de haver uma necessidade para isso resultar, uma sede e necessidade absoluta de autoexpressão. Porque eu acho que há uma seleção natural que é feita. No sentido em que se tu não tiveres isso, vais perceber muito rapidamente que isto não é para ti.
Até mesmo se perceberes que tens de desistir. Se te aperceberes que tens de desistir, então desiste. Isto não é para ti. Mas acho que há uma viragem. Para mim, houve certamente.
Podes bater no fundo. E certamente baterás no fundo. Vai haver muito desespero, muita rejeição. E vais perceber ou não se essa rejeição, se essa tristeza, dureza, dificuldade, ansiedade constante, vale a pena. E essa viragem de pensamento acho que surge quando percebes que podes usar todos esses sentimentos como uma vantagem, como gasolina para ires mais longe e te desafiares a ti mesmo. Correr riscos. Quero arriscar, quero ser desafiado e levado ao limite.
O que eu posso dizer é pela minha experiência. Foi o que eu passei. E houve momentos muito duros. E continuo a ter momentos muito duros. De rejeição. De desespero. De projetos que caem. É como teres o coração partido de tempo a tempo e ainda este ano aconteceu-me algumas vezes. Tipo um mini heartbreak. Não é fácil, especialmente quando envolve projectos internacionais com pessoas que cresceste a admirar e que sabes que o processo te vai desafia e preencher artisticamente. A tua vontade e a tua paixão pelo que fazes tem de justificar passares por isso. Se não justificar, então não faz sentido.
Não fazemos ideia de que profissões é que daqui a 10 anos vão ser relevantes ou não, por causa da AI. Não há qualquer tipo de segurança garantida na profissão que escolhes para a tua vida. Muitas pessoas acreditam que a AI vai acabar com os artistas mas, na verdade, eu acredito que talvez seja das poucas coisas que vai sobreviver — precisamente por serem tão humanas.
Foto – Maria Rita
Styling – Tiago Ferreira
Make Up & Hair – Paulo Fonte
Assistente de Styling – Tatjana Jourdain
Agradecimentos Às Salinas do Samouco e a Stivali Lisboa