Uma das bandas portuguesas mais icónicas dos anos 80 regressa este ano com mais um disco de originais. Transgressio Global, surge 10 anos depois com a promessa de transgredir a estética e os géneros musicais, misturando o passado e o presente na mesma linha temporal.
Entrevista a João Peste dos Pop Dell’Arte
No ano em que celebram 35 anos de carreira, editam um novo disco. Consideram ser uma celebração, visto que dista 10 anos do álbum anterior?
Apesar de distar 10 anos, começamos a pensar no novo trabalho logo após o lançamento de Contra Mundum , resultando em 7 anos de trabalho. Naturalmente, faz com que seja um disco muito extenso. Na verdade, estamos a pensar na possibilidade de uma edição em vinil, apesar de ainda não estar confirmado, o que teria que ser um disco duplo, uma vez que a edição em CD terá oitenta minutos. Se fosse avaliado ao metro com certeza já teríamos um prémio.
A extensão do disco justifica, na vossa opinião o espaço entre as duas edições?
Um disco com 21 temas e a demorar cerca de 10 anos a ser feito é um disco mais complexo, de difícil explicar em duas palavras. É um disco dos Pop Dell’Arte, reconhecível como tal, seja lá o que isso for, mas creio que as pessoas quando ouvirem os temas, mesmo eles sendo muito diferentes entre si, reconhecerão a nossa sonoridade.
Nesse caso, existe algum fio condutor entre os temas do disco?
A palavra chave do disco, digamos, é a palavra transgressão, daí o titulo Transgressio Global. A palavra chave servirá para as pessoas compreenderem melhor o disco.
O disco tenta também ser uma viagem por vários tempos, unindo-os numa espécie de um só tempo, ou seja uma amálgama de tempos num só tempo. Aliás o penúltimo tema do disco chama-se “In Diferent Times (At the Same Time)”, exatamente com esse espírito e portanto tem a ver por um lado com o presente, contento temas da atualidade como “A New Identity”, sendo a questão identitária hoje tão importante, ou o tema “The King of Europe” que tem a ver com o estado atual da União Europeia, ou o “Freaky Dance” que é uma celebração da mitologia do rock com referências que vão desde a Patti Smith ao Jimmy Morrison.
Por outo lado, tem temas que remetem para outros tempos, há um tema que é uma versão do Vitor Jara, “El Derecho de Vivir en Paz”, que é um tema bastante conhecido, e depois tem três poemas que resolvemos adaptar a música, um deles o de Camões do séc. XVI que é o “Cá, Nesta Babilónia”, que é um dos poemas com um sentido mais critico e mais cáusticos de Camões. Temos também um poema em latim do Gayo Catulo, que é um poeta do séc. I AC, contemporâneo do Júlio César. E temos também um poema, de autor e data desconhecida, mas que é um poema ao estilo de Anacreonte, um poeta do séc. V AC, com grande influência para a poesia dos séculos seguintes.
À primeira vista, o que é que estes autores têm a ver uns com os outros sendo eles de tempos tão diferentes?
A amálgama de referências é propositado. Acho que apesar de diversidade estética, a diversidade de referências e diversidade de épocas, penso que seja coerente e por isso é que a palavra chave é a transgressão. Entendo a transgressão como o ultrapassar limites. Na Arte entendo que devem-se ultrapassar os limites estéticos que nos são impostos e que nos condicionam. Na Arte pode não haver só transgressão em termos estéticos mas pode haver em termos ideológicos, e até em termos morais. Quando se transgride pode-se transgredir ideologicamente uma obra sem transgredir a estética ou pode-se transgredir esteticamente sem o fazer ideologicamente ou moralmente.
Como os Pop Dell’Arte veem as novas músicas das bandas atuais em termos de transgressão no tempo atual?
Eu acho que infelizmente está a haver uma atitude muito pouco transgressiva na maior parte das bandas e na maior parte das coisas que estão a ser feitas. Considero que as bandas das décadas de 60, 70 e 80 foram bastante transgressivas, criaram-se bastantes coisas novas e essas coisas novas muitas vezes correspondiam a movimentos socias. Não era só a musica. Ser Punk não era só ouvir a música Punk, era mais do isso, era uma atitude, era uma maneira de estar na sociedade. Por exemplo o maio de 68 em França foi influenciado pela geração do verão do amor de 67, que tinha sido uns meses antes. E o movimento Hippie, que era contra a guerra e pelo amor livre, teve muito a ver com o movimento do maio de 68, porque surgiu por questões como o uso das casas de banho comuns por homens e mulheres, os dormitórios comuns e levou a uma revolta pelos estudantes.
Isto para dizer que nas ultimas décadas curiosamente não tem surgido nada muito novo. Se as pessoas acharem isso devem então apontar-me um movimento musical, dentro da cultura jovem, completamente novo como esses que referi. Eu acho que não há. Não neste sentido nem com aquelas dimensões. Há coisas boas e há bons músicos, mas não há uma vertente nova, um caminho novo. Há pessoas que inovam dentro das coisas que fazem mas não há, em meu entender, uma linguagem musical nova, pelo menos nas ultimas décadas.
Os Pop Dell’Arte já tiveram várias formações na sua carreira. Porque se mantém a banda viva, uma vez que a grande maioria das bandas acaba por cessar atividade e em que medida este disco entra no ADN dos próprios Pop Dell’Arte?
Acho que a pergunta deveria ser ao contrário, perguntar às bandas que acabaram porque é que acabaram e às que se mantiveram porque é que se mantiveram. Parece-me normal que quem faça música e opte por fazer música, continue a fazer música durante uma série de anos. Se é um projeto musical e se a pessoa acha que as pessoas envolvidas nesse projeto musical acham que ele não se esgotou, não vejo porque não devam continuar e manter durante mais anos. Estranho é porque é que as bandas acabam em vez de as bandas continuarem. Embora nalguns casos compreendo que as bandas que não têm mais nada a dizer resolvam acabar ou ir fazer outra coisa. No dia em que achar isso é porque acho que o projeto Pop Dell’Arte morreu e eu considero que o projeto ainda não morreu.
Poder-se-ia dizer que a banda Pop Dell’Arte é um projeto de vida pessoal?
É uma pergunta difícil de responder. O que é que é um projeto de vida? Acaba por ser em parte, mas um projeto de vida parece que a pessoa só vive para aquilo. Mas existem outras coisas que são importantes. Claro que os POP Dell’Arte ao fazerem música fazem parte da minha identidade. Eu não gosto muito da expressão “Projeto de vida” porque as pessoas podem ter vários projetos numa só vida. Digamos que tem sido o meu projeto de vida principal.
Os Pop Dell’Arte têm uma teatralidade muito vincada, à partida era expectável que houvesse mais registos em vídeo dos singles. Há alguma razão em particular?
Há motivos para isso. Em termos pessoais, não falo pelo resto da banda, não sou grande fã de videoclipes. Prefiro primeiro conhecer a música. Entendo o vídeo como um complemento. Porque acho que quando ouvimos só a música temos uma liberdade total de criar na nossa mente as imagens que quisermos. Podemos associar aquilo ao que quisermos. Não estamos condicionados por nada. Sempre achei que os videoclipes condicionam muito a assimilação e a própria liberdade criativa do ouvinte. Mas entendo que seja uma necessidade para promover a música. Como é quase uma inevitabilidade de se fazerem vídeos, vamos fazê-lo. Estão programados dois vídeos. Um está a ser acabado e outro está-se a tratar da logística. Um dos temas “Sem Nome”, o vídeo será da responsabilidade do Paulo Monteiro, e penso que em breve estará disponível. É um tema com uma linguagem mais próxima do rock e com uma letra em português. E o outro tema é um pouco mais sofisticado no sentido em que é um vídeo do tema “The king of Europe”, um olhar irónico sobre a União Europeia atual, a partir de um personagem como sendo o rei da Europa. É uma personagem inventada que tenta caricaturar o estado da europa, e que seria simultaneamente xenófoba, racista, homofóbica, machista, pretensiosa e neoliberal. Portanto tudo o que nós não gostamos. Esse vídeo é da responsabilidade do Carlos Conceição, um realizador com quem trabalhámos no vídeo de uma versão de “Lady Godiva’s operation” dos Velvet Underground.
Sendo o disco Trangressio Gobal, um cruzamento temporal de referências a coexistirem numa mesma linha temporal, em que medida é que o fizeram?
Tentámos cruzar os tempos e os estilos numa linha temporal única. O tema “Freaky Dance” é uma celebração do rock, provavelmente o tema mais rock do disco e é uma homenagem ao imaginário do rock. No fundo, não podendo referir todos os nomes, destacamos Marc Bolan dos T-Rex, Jim Morrison dos Doors, John Lydon dos Sex Pistols, Patti Smith, Ian Curtis dos Joy Division e Bob Marley. Há um tema que brinca um pouco com a ideia do universo da Moda, “Style is The Answer (to almost everything).“ Selecionamos para integrar no alinhamento do disco o tema “Anominous”, mas que tem uma nova roupagem. Saiu há quatro anos, provavelmente precipitamo-nos nessa altura, mas agora editamos com uma versão nova.
O tema “Post-Romantic Lover” vai resgatar o poema ao estilo Anacreonte, que já referi. Incluímos três pequenas miniaturas: que é talvez o material mais experimental que compusemos, mas são faixas muito pequenas, que rodam um minuto, uma espécie de interlúdio, têm todas o mesmo nome com uma variante: “3 Things About Foucault ( you must love)”; “3 Things About Arvo Pärt You Must Remeber” e “3 Things About Orpheus You Must Understand.” Musicalmente são diferentes do resto do alinhamento do álbum porque foram compostos só com colagens, ninguém toca nem ninguém canta nada. É uma das outras vertentes que sempre exploramos. Estamos a colar elementos de uma outra realidade numa coisa para a qual ela não tinha sido inicialmente feita. Numa espécie de corte e colagem, ao estilo do movimento artístico Dada.
Texto de Carlos Alberto Oliveira, para a PARQ, edição de Março 2020