Crónica por António Barradas

Era pela frieza de umas mãos gastas que ia. Pé ante mão, pernas a roçarem uma na outra e o futuro que parecia caber todo ali. Naqueles mais de 40 mil lugares sentados, contidos numa vista construída de sonhos flutuantes e uma certeza de união que os meus 5 anos desconheciam.

Foi pelos 52 anos do meu pai, quando a minha primeira infância ainda brotava dos refegos aninhados na barriga macia, que entrei naquela que seria para sempre a tampa da minha panela – e que bons guisados faríamos. Um raio de segurança, desenhado a compasso e traçado a crença. O perímetro confundia-se com o azul da vida, essa cor tão própria. Da nova vida que ganhávamos naquele cantinho à beira-rio projectado. Não plantado. Com a história de glória em fundo, era o futuro de incerteza que me fascinava.

 Era alegria de desconhecidos misturada com palavrões tão grandes como o meu 1.30m, da euforia de um ponto tirado a ferros e um abraço dado a alguém de quem só conhecíamos o olhar azul. Que era tudo o que precisávamos.

Naquele estádio, algures em Setembro de 2000, descobri outras formas de amar. Com arrepios na espinha sentidos a galope quando 11 semi-Deuses – assim o entendia – se deslocavam sobre aquele tapete onde eu sentia que não havia mais nada a não ser esse arrepio na pele: amor a uma estranha forma de vida e a uma mística de congelar mindinhos.

O meu pai nunca foi dado a muitas emoções. Não daquelas observadas a vista desarmada, sem um telescópio de sentimentos em punho para analisar a fundo todas as constelações de alegria escondida. Um “podia ser melhor” aqui; outro “não foi mau” acolá e os meus dedos cruzados à espera de viesse de lá um “excelente! Estás de parabéns, campeão”. O meu esforço era sempre esse, o de procurar um elogio para me sossegar a inquietude da imperfeição. 

Quando entrávamos naquela espécie de santuário de agnósticos, aparecia sempre uma luz diferente nos seus óculos gastos, com mais dioptrias do que dedos das mãos. Tentei entendê-la desde o primeiro apito. Do primeiro arrepio. Do primeiro festejo. Ali éramos um só a gritar por algo que nos fundia. Os 47 anos de diferença esfumavam-se e éramos duas crianças a erguer os punhos no ar, enquanto caíamos num abraço apertado, carregado de fé. Em Deus nenhum, mas em todos eles. Aqueles 11, que me carregavam no peito durante 90 minutos e uns pozinhos. Num Olimpo do desporto rei onde nenhum daqueles figuraria, mas no meu santuário todos tinham um São antes do nome.

O Restelo passou a ser uma Meca onde colocávamos pedra a pedra os poucos – mas bons! – momentos partilhados. O Belenenses tornou-se um dos meus amores maiores. Nada tem a ver com futebol, pouco se relaciona com desporto e ainda menos tem a ver com mérito. 

Há um sentimento a palpitar nas entranhas mais recônditas que me reconforta. “Clube do sonho”, está escrito numa música a fazer de reza. Nada mais certo. Clube de Futebol “Os Belenenses” terá sempre uma mística bairrista, uma mansão a céu aberto a albergar todos os que se queiram esconder dos desaforos quotidianos. Ali não há nada disso. A casa é comum e todos ajudam a não ruir. Ninguém deixa ninguém à porta. Não até se ouvir um apito, a bolha rebentar e voltarem todos para os seus percalços caseiros. 

Hoje o meu pai não se lembra. Sabe, no seu fundo azul, que fomos felizes. Não tem memórias, mas tem pêlos caídos de todos os arrepios sentidos durante as muitas horas acumuladas naquele estádio. Não tem qualquer reminiscência de me ter tornado mais feliz por me ter feito sentir parte de algo, mas sabe. Algures num dos – ainda frequentes – raios de lucidez ainda remata, com força, para a minha baliza vazia: “então e o nosso Belém?”. O golo entra e a alegria é a mesma do ano 2000 ou de qualquer um dos outros 1001 momentos ali passados, alheados de tudo. A certeza de histórias para guardar e uma união que criou uma relação, fez a força e nos ajudará em todos os dias menos azuis que caminham a passos mais largos do que os que dei naquela primeira vez. 

Na altura, a mão era tua, pai. Agora será a minha.

texto por António Barradas para PARQ_77.pdf (parqmag.com)