Morador em Coimbra, Rafael Vieira, arquiteto, quis debruçar-se sobre um momento traumático para a sua comunidade urbana, quando uma parte dessa população foi desalojada da zona alta da cidade para dar lugar ao novo complexo universitário que se ia construir. Quis dar uma versão nova, pegando nas recordações daqueles que viveram os acontecimentos, num momento em que a memória viva desse núcleo estava em perigo de se perder para sempre. Das suas pesquisas resultou um livro, Os Salatinas, Coimbra da Saudade, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos

Como te surgiu o tema dos Salatinas no contexto da renovação da Cidade Universitária durante o Estado Novo, porquê o teu interesse em o investigar?

O tema dos Salatinas surgiu por proximidade afectiva. A minha avó do lado paterno fazia parte dessa comunidade e eu queria reencontrar-me com essa história familiar. Enquanto arquitecto já conhecia a história de destruição e renovação da Alta para construção da Cidade Universitária pelo Estado Novo. Mas não sabia detalhes do lado humano da história, isto é, das mihares de pessoas que ali viviam e faziam a sua vida quotidiana e que foram expulsas e expropriadas. Pretendi assim reconectar com a minha história familiar e saciar o meu interesse de arquitecto e jornalista.

Era algo que já tinha sido estudado?

Os estudos que foram feitos, na sua grande maioria, debruçam-se sobre o edificado, sobre os valores patrimoniais perdidos, sobre a temática urbanística e arquitectónica e sobre as questões políticas. Permanecia a lacuna sobre a comunidade que ali existiu e que alguns trabalhos iam tentando colmatar sob ângulos específicos, mas sem dar a voz devida, no meu entender, a quem não teve hipótese de se manifestar. Isto até pelas razões do contexto social e autoritário. Ou seja, o dar voz à anónima massa humana de desalojados da velha Alta.

Como referes, não é propriamente um tema novo, porquê voltar ao assunto neste momento?

O tema caiu no esquecimento pelo avançar das décadas, já passaram oitenta anos desde que começaram as demolições e a cidade – assim como as pessoas e a memória colectiva – diluíram aqueles acontecimentos. Interessou-me, além da proximidade disciplinar e afectiva, a tessitura social que se perdeu com as demolições, as vivências e tradições daquela população desenraizada e que faltava explorar com uma profundidade mais delicada. Essa é a grande mais valia do livro que dediquei a este tema, assim também como o de permitir revelar esta história (e estas histórias) a um público mais amplo, mais novo e de outras geografias, revelando a história dos salatinas para um público nacional.

Quais foram as tuas principais fontes e quanto tempo necessitaste para desenvolver esta investigação e escrever o livro?

Além da pesquisa que fiz de narrativas fixadas em livro por antigos estudantes e dos estudos académicos que pegaram na geografia e história salatinas por diversos ângulos, as minhas principais fontes foram as pessoas com memória viva da velha Alta, um punhado de salatinas com quem convivi e de quem me fiz próximo. Estas pessoas residem nos bairros para onde foram morar com as suas famílias depois de sairem da Alta de Coimbra e que ficavam na periferia da cidade da década de 40: especialmente o Bairro de Celas, o Bairro da Fonte do Castanheiro e o Bairro Norton de Matos. Demorei sensivelmente um ano a investigar, entrevistar e a escrever o livro.

Já que recorreste, a fontes vivas com historias de vida que puderam expressar a sua visão dos acontecimentos, qual foi o sentimento que prevaleceu?

É muito difícil de sistematizar como um sentimento único. Há uma grande complexidade e diversidade de sentimentos nas pessoas deslocadas com quem interagi. Há quem guarde uma grande mágoa pelo que perderam, material e imaterial, pela injustiça das expropriações, que foram pagas muito abaixo do valor de mercado, pela ausência de alternativas e pela impossibilidade de contestação. Toda a inevitabilidade que se lhes apresentou, temperadas com história de suicídio e tristeza. Para também, logo a seguir, essas mesmas pessoas comentarem sobre a qualidade de vida que ganharam com a mudança para as novas casas, já que muitas casas da velha Alta eram insalubres, tinham instalações sanitárias mínimas e não tinham água canalizada.

Como arquitecto qual a tua posição crítica sobre essa questão do realojamento de comunidades ja que continua a ser um tema tão actual?

Vejo como fundamental prover de habitação de qualidade quem a ela não tem acesso. A parte fundamental nesse processo e que é sempre desconsiderado é o de ser necessário realojar as populações mais desfavorecidas em localizações que permitam uma interacção social diversificada. A população salatina foi efectivamente segregada por classes sociais ao saírem da Alta, já que os bairros eram diferenciados em localização, equipamentos, qualidade da construção e tipologia. Se na Alta a cidade era polifuncional e as diversas classes sociais partilhavam a rua e o largo, edifícios ricos a ladear edifícios pobres, com os novos bairros as classes sociais foram filtradas por localização. As classes mais desfavorecidas foram conduzidas para os bairros de Celas e da Fonte do Castanheiro, e a classe média para o Bairro Norton de Matos. Esta separação e perda de convivialidade entre diferentes extractos da sociedade é um erro.

Que solução podias preconizar?

Para a época em que começa a história do livro, década de 1940, eu preconizaria uma solução que permitiria adequar a cidade de então à necessidade de criação de uma cidade universitária. Em vez do que se fez, o substituir do tecido construído e da mudança forçada da população residente, preferiria criar a cidade universitária na extensão da cidade de então, prolongando-a e preenchendo vazios urbanos A escolha pelo local onde eventualmente se fez a cidade universitária de Coimbra – conhecida actualmente como Pólo I – tem um forte carácter simbólico, por ter sido ali primeiramente localizada a Universidade por D. Dinis, em 1308, vinda de Lisboa. Mas o seu forte pendor simbólico podia ser mantido com um solução de compromisso.

O teu estudo acaba de ser editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS). Podes falar-me do impacto e aceitação do livro?

O livro foi editado pela FFMS e será apresentado publicamente pela segunda vez na Feira do Livro de LX, a 19 de Junho. Está bem visível nos escaparates e nas montras de todas as livrarias de Coimbra, Almedina, Casa do Castelo, Bertrand e restantes, e pelo que me têm dito os livreiros tem vendido muito bem. Ou seja, parece-me que localmente tem sido muito bem recebido. Já das gentes salatinas e das restantes pessoas da cidade, há orgulho e enorme curiosidade pelo tema.