Texto de Roger Winstanley
No desenvolvimento do Tarot contemporâneo, tal como o conhecemos hoje, há três momentos chaves que vale a pena analisar. O primeiro momento acontece durante o séc. XIX quando alguns círculos cultos da melhor sociedade passam a formar grupos esotéricos para debater alguns aspetos relacionados com o espiritualismo e rituais mágicos, alimentados pelo conhecimento que chegava das descobertas sobre culturas ancestrais. Essa curiosidade culminou no primeiro baralho de tarot moderno conhecido como o Rider Waite Smith criado pela ilustradora Pamela Colman Smith sobre a orientação de A.E.Waite, publicado em 1909.
Os movimentos de contracultura que decorrem nos anos 60, proporcionam um segundo momento, em que novamente renasce o interesse pelo Tarot. Os movimentos ligados aos hippies e os beatniks absorveram alguns aspetos do universo do Tarot, procurando explorar o potencial que aí encontraram em termos de libertação da mente. Foi nessa mesma época que o Tarot Thoth de Aleister Crowley ganhou popularidade apesar de ter sido publicado muitos anos antes. Tendo por base imagens desenvolvidas entre Crowley e a pintora Lady Frieda Harris, o Tarot Thoth foi largamente apreciado pela geração da idade de aquário devido a densidade simbólica das suas referências e pela estética apurada baseada numa aliança entre geometria projetiva e o estilo Art-Decó.
Mais recentemente voltamos a assistir a uma proliferação de edições baralhos de Tarot a que não é alheio, o interesse das novas gerações e os meios de reprodução gráfico mais acessíveis. Formas de financiamento como o crowdfunding, entre outros, são vias que permitiram um criador poder sonhar lançar o seu próprio baralho. Ou seja, neste momento assistimos a uma proliferação de autores dispostos a criar e a publicar propostas mais pessoais, trazendo assim uma maior diversificação, o que faz com que hoje o Tarot seja um veículo para pensar nas mudanças e nas questões referentes à identidade que atravessam a sociedade. Em conclusão, o Tarot vive hoje o seu grande momento.
As raízes do Tarot são muito antigas e é consensual que remontem ao séc. XV, na Itália, onde só era acessível a uma elite muito restrita. Ou seja, o oposto da atualidade, onde a diversidade é a palavra de ordem, tanto ao nível das propostas criadas como daqueles que o procuram. Até certo ponto, cada geração tem sugerido reinterpretações dos seus símbolos e adaptando-os as suas circunstâncias, o que tem permitido que o seu interesse se mantenha vivo, pondo à prova a sua própria capacidade de sobrevivência ao longo dos tempos. Apesar de toda a evolução, o baralho de Tarot básico tem-se mantido igual desde a sua origem. Pelo menos estruturalmente. Há 78 cartas que incluem 22 arcanos maiores (trunfos) onde consta por exemplo, a morte, o ermita, os amantes, etc. Juntam-se depois 56 arcanos menores , 4 naipes de 1 a 10 e 4 figuras, uma composição em tudo semelhante a baralho de cartas que usamos para jogar. Com variações mínimas um baralho tem que conter este conjunto de critérios para ser considerado um baralho de Tarot. Qualquer outra coisa seria então considerado um oráculo com igual interesse e também usado para práticas divinatórias. Contudo, não é tarot.
Muitas vezes as pessoas ficam surpreendidas que o aspeto divinatório que em geral associamos ao Tarot seja até algo relativamente recente. Antes do séc. XX o Tarot era essencialmente usado como jogo de apostas, o que significa que esse aspeto de previsão tem passado por uma certa transmutação ao longo do tempo. Na introdução do livro que acompanha o baralho Tarot Lua, a sua criadora, Maree Bento, cita Philippe St Genoux para frisar que segundo este estudioso, o Tarot tem mudado muito ao longo do seu percurso no tempo e que “quando esqueces a ideia de prever o futuro e começas a ganhar a experiência de jogar as cartas como um espelho da psique, nesse momento o Tarot torna-se um caminho para a sabedoria.”
É nesse ponto que o Tarot se encontra hoje; menos previsão de futuro e mais como ferramenta para objetivos introspetivos, meditativos e terapêuticos que levam a um autoconhecimento. Mais que isso possibilita uma estrutura que lança os indivíduos para um quadro de vida mais criativo. Estes são alguns dos aspetos que são valorizados na publicação da Taschen, “Tarot”, onde aparece de forma muito atualizada as várias perspetivas desse universo. Este é o primeiro livro de uma nova série que a editora alemã quer desenvolver sobre o conhecimento esotérico, tendo já anunciado uma segunda publicação, desta vez sobre astrologia.
O “Tarot” da Taschen mantém aquele formato de Coffee Table luxuoso a que a editora já nos habituou. É um livro com muitas páginas, ricamente ilustrado acompanhado por textos de vários autores que criam uma perspetiva rica do universo do Tarot. Pessoalmente, o que mais me marcou foi o impacto das imagens ampliadas, especialmente para quem está habituado a ver essas composições ilustrativas em tamanho reduzido, no final de contas, no formato de uma carta. Ampliadas a extensão das páginas da Taschen essas imagens são amplamente apelativas, surgem na sua verdadeira dimensão, de obras de arte. É muito fácil ficar fascinado e seduzido pelos caminhos que os criadores percorrem para alcançarem numa perspetiva pessoal esse universo simbólico. No fundo é isso que tem sido o motor que nos tem levado a manter o interesse pelo tarot, a perspetiva de um diálogo que é encetado com os autores na reinterpretação pessoal desse universo simbólico proposto. Não há significados fixos e, como tal, são livres de interpretação sendo as criatividades apresentadas pelos autores um ponto de partida. As cartas propostas vão provavelmente facultar uma interpretação de nós mesmos e do mundo que nos rodeia. Por tudo isso, a Taschen dá conta que o impacto do mundo do Tarot não se reduz às cartas, dando também conta de muitas artistas que criam telas baseadas em arquétipos intemporais como o amor, os amantes, a lua…
Como referi, o universo do Tarot tem vivido na última década uma verdadeira explosão, um facto que não passou despercebido neste coletânea da Taschen que dá uma ampla visão dos baralhos criados nos últimos anos. Apesar de dar um panorama bastante completo, obviamente não esgota, tudo o que foi possível criar nos últimos anos. Entre as referências incluídas, uma das mais interessantes parte dos Uusi, um atelier de artistas de Chicago que na época atual são considerados figuras chaves para compreensão do renascimento do Tarot. Já produziram vários baralhos e gostam de se referir às cartas como objetos intemporais contemplativos que saíram da masmorra do New Age e entraram no mundo atual. O seu baralho, Pagan Otherworlds, um dos mais representativos, mistura referências ao xamanismo, ao folklore europeu, gerando alusões ao retorno à natureza. As imagens propostas nas suas cartas surgem a partir de composições de pinturas a óleo que eles próprios criam. São imagens que acabam por ser minimais, onde prevalece uma ideia de espaço vazio com céus a perder de vista, levando-nos facilmente a um sentimento de contemplação.
Para além do que fica apontado pela Taschen, há muitos outros que seriam necessários referir. O baralho Lua Tarot, da luso americana Maree Bento, residente em Portland, é um desses exemplos. A sua curiosidade reside na forma como manipula digitalmente gravuras esquecidas do séc. XIX, dando um aspeto final de algo antigo e histórico ao seu baralho. Contudo, numa segunda análise sobre as imagens que o compõem, revela uma preocupação de que seja um baralho inclusivo, o que lhe dá uma dimensão muito contemporânea. Inclui representações pertinentes da comunidade afro-americana durante o séc. XIX e altera o sentido de alguma imagética cristã predominante. Por exemplo, retira a carta de julgamento que passa a ser uma carta de evolução, o que considera ser mais inclusivo na sociedade atual
Outra artista não incluída mas que tem tido uma grande projeção nos últimos tempos, é Courtney Alexander, uma artista que explora a narrativa da sua identidade enquanto Fat Black Queer Femme. Após as Belas-Artes ela fez um Crowdfunding que tinha como proposta juntar os meios financeiros para publicar um baralho que tinha por base um conjunto de pinturas realizadas no decorrer do seu final de curso. Juntou na altura 30 mil dólares e assim nasceu o baralho Dust II Onyx, um baralho que, que foi um sucesso gigantesco tendo-se esgotado rapidamente. Já vai na segunda edição, onde mais uma vez recorreu a um financiamento através do crowdfunding arrecadando desta vez 50 mil dólares para concretizar o seu propósito. São valores que acabam por ser reveladores do interesse que a nossa sociedade tem hoje pelo Tarot. As imagens que Courtney Alexander propõe para as suas cartas refletem expressões relativas ao debate que hoje em dia se tem sobre o género. Procurou que todos se sentissem incluídos e fez prevalecer as influências da sua cultura pop, dando relevo a ícones da sua geração, como Grace Jones. Tal como Courtney Alexander referiu, todo o seu processo inerente a criação do seu baralho foi uma oportunidade pessoal para repensar a sua relação com as conotações sociais relativas aos “pretos”, à ideia de escuridão, procurando encontrar um ponto de fuga mais positivo. Concluiu que foi da escuridão que nasceu o nosso universo.
Estes são apenas alguns exemplos de artistas que estão a reinterpretar o Tarot moderno, abrindo novos significados, num mundo acelerado e impessoal dominado pela tecnologias São criativos que mantém o interesse por uma antiga estrutura iconográfica, porque nesta ainda lhes permite perspetivar um lugar para todas as identidades e se torna um poder de expressão e um espelho das mudança de valores do séc. XXI.
texto de Roger Winstanley para PARQ #70 Junho 2022 PARQ_70.pdf (parqmag.com)