Tamara Alves
Texto de Francisco Vaz Fernandes
No panorama da Street Art portuguesa, Tamara Alves é um dos nome que não precisa de apresentações, dada a constância de encomendas e produções em murais que foi realizando ao longo do país. A sua imagética tem-se completado em obras que realiza sobre papel ou tela e seja desenho ou pintura há uma persistência para representações femininas. Refere nesta entrevista que considera importante que sejam as mulheres a dar uma visão de si mesmas e tem pena de verificar que haja tão poucas mulheres na street art. Na sua obra encontramos mulheres urbanas com almas de guerreiras que nos seus sonhos são igualmente lobas, o que no seu entender são apenas mulheres que seguem os seus instintos e que esse lado selvagem que procura, pouco tem a ver com uma ideia de agressividade. Olhando para as suas imagens nomeadamente as produzidas para a Galeria Municipal Alves Redol na Amadora, percebemos que as suas mulheres estão sempre num limiar de um estado a outro: entre o sonho e o despertar, entre o urbano e a natureza, entre humano e o animal. No seu conjunto procuram desenhar o seu próprio destino.
PARQ : Como surgiu esse convite para fazeres um individual na Galeria Municipal de Arte Artur Bual, na Amadora?
Tamara Alves (TA) : O convite decorre após várias peças realizadas para a Amadora. Inicialmente, tive um convite para pintar um pequeno quiosque inserido no festival Poesia na Rua organizado pela Câmara da Amadora. Eles gostaram e voltaram a convidar-me no ano seguinte propondo-me desta vez uma parede de grandes dimensões. Foi então que apareceu “Ophelia”, dentro do contexto do mesmo festival. Logo, nessa altura, surgiu o convite de expor na Galeria o que acabou por acontecer só agora, mas depois de ter sido adiada repetidas vezes, dada a circunstância da pandemia
PARQ : A exposição tem como título -”But first, some rebellion” , a referência à rebelião tem aparecido várias vezes ao longo da tua obra. Que sentido dás à palavra?
De início, quando comecei a preparar as peças, tinha como ponto de partida a tal Ophelia que aparecia no mural, uma mulher que não é submissa ao homem, nem à sociedade em geral e que é dona da sua história. Ou seja, o contrário da Ophelia que nos é dada por Shakespeare. Contudo , porque a exposição foi sendo adiada e tive tempo de ir olhando para o que já tinha terminado, comecei a produzir algumas mudanças. Mantive uma certa melancolia nas personagens que compõem a exposição mas elas agora estão prontas para a acordar. Mas acordar para o quê? É uma rebelião que pode ser silenciosa mas que pode despertar uma inquietação no espetador, criar expectativas sobre o que vai acontecer. Será que são fugitivas? São selvagens? São figuras femininas mas eu não descrimino relativamente ao género. Também podem ser homens ou animais. Por isso o que prevalece nesta rebelião é um sentimento de que há aqui qualquer coisa que está acontecer. Uma leve inquietação ou um burburinho. Prefiro deixar estas histórias sempre em aberto
Estas figuras são recorrentes. Elas vão te contando histórias de uns anos para os outros?
TA: Acho que são sensações, começaram em 2019 quando inaugurei uma exposição na galeria Underdogs intitulada, “When the rest of the world has gone to sleep”. A história começa pela noite, e as figuras que represento contam uma história: quando as luzes da cidade caem e todos se recolhem: amantes, lobos, que caminham descalços pelo alcatrão quente, esfomeados, uma história bastante urbana. São histórias que vou contando na minha cabeça. Essa inquietação e busca de sensações fortes estão na base deste imaginário, mas ao mesmo tempo conjugam-se com a calma e o silêncio na noite. Há sempre amor nessas histórias, porque não gosto de contar histórias agressivas. Conto histórias com sensações fortes mas positivas. É verdade que vou repetindo algumas personagens mas, necessariamente vão-se transformando ao longo do tempo, não são exatamente as mesmas. A próxima exposição que já vem aí, até poderia ser vista como uma continuação da que decorre na Amadora, mas desta vez dá-se uma espécie de catarse em que as peças vão estar maioritariamente rasgadas. Contudo o rasgar surge mais como um processo de sedução. Desta vez elas também refletem o facto de ter estado tanto tempo fechada na presença dessas personagens e da minha relação com o processo de as compor e descompor no papel. È como se essas histórias agora fossem flashes algo que me vinha à memória, incompletas.
PARQ :Voltando à questão da rebelião, encontras essa rebelião na questão feminista que está associada à tua obra e na street art?
TA: Acho que o facto de ser mulher e de ter voz na rua tem de fazer de mim feminista. Há 10 anos tinha mais a provar do que tenho agora, porque a street art era um movimento ainda muito ligado ao graffiti e tu não supunhas que uma mulher pudesse andar a saltar muros e a pintar as casas de toda a gente. Hoje as circunstâncias são outras, até porque as pessoas que querem ir para a rua pintar em grande escala podem vir das Belas-Artes, têm um percurso académico e não estão diretamente ligadas ao grafitti. Relativamente ao feminismo acho que as minhas mulheres mudam a forma como nós somos representadas no mundo da arte. Interrompem ideais masculinos que impunham um tipo de nús, representando com mulheres estendidas nas camas ou sentadas no sofá, submissas ao olhar do homem e espetador. Gosto que as minhas mulheres sejam donas da sua própria história. A balança esteve sempre desequilibrada e procuro de alguma forma participar nesse equilíbrio necessário para os dias de hoje.
PARQ : Porque achas que há tão poucas mulheres na steet art?
TA: Já pensei muito sobre isto. Acho que tem mesmo a ver como a sociedade se organiza, como somos educados e que papéis nos são designados. Imagino que muitas mulheres achem que a street art não seja para elas e acredito que há realmente algo a fazer neste campo. Eu fui educada de forma a que o meu género não me impusesse limites e por isso achei que seria capaz de fazer qualquer coisa. Contudo tenho a noção que está estabelecido que uma mulher não deve andar a saltar muros ou pela noite a pintar paredes, ou ligada a qualquer tipo de trabalho designado “masculino” Estas ideias ainda pesam muito nas mentalidades gerais. Há que fazer uma mudança gigantesca de mentalidades antes de chegarmos aqui e ter muitas mais mulheres na street art
PARQ : Mulheres nas artes plásticas até há muitas e foi crescente em todo o século XX, mas se calhar estão ainda restritas ao espaço interior.
TA: Há muitas sim, mas por exemplo, em áreas como a da escultura penso que seriam ainda menos porque é uma técnica que está associada a um trabalho duro, masculino, especialmente se estamos a falar em trabalhar em pedra ou em grande escala. Mas seriamente vejo isso como limitações que estão intrínsecas numa sociedade tipicamente condescendente machista que nos retira dessas posições e que nos faz acreditar que não seremos capazes de carregar uma pedra subir a um andaíme e por ai…
PARQ: E tu lembras-te quando foi a primeira vez que tiveste que te debater com a grande escala . Lembras-te das emoções desse dia?
TA : Primeiro que tudo lembro-me das vertigens. Eu tenho muitas vertigens e ao longo dos tempos fui apenas conseguindo controlar essa fobia, lutando contra mim própria, isso para perceberes até onde vai o meu amor por aquilo que faço. Em cada parede que começo tenho sempre um período de habituação porque as vertigens continuam lá, só vão ficando mais fáceis de lidar. Mesmo agora, na última parede que eu fiz, aos 13 metros de altura, lá no topo, não deixei de ter as pernas a tremer e sentir o corpo a paralisar. Preciso de voltar a descer para voltar a subir. É como se estivesse constantemente a desafiar-me, nunca é fácil. Lembro-me de estar a pintar uma parede com 4 metros de altura no Plano B em 2010, antes de vir para Lisboa e só o facto de subir 3 degraus num escadote me perturbava. Por isso foi um longo caminho até agora.
PARQ : Tu quando estás a pintar os teus grandes murais, tens a ajuda de alguém é um trabalho muito solitário?
TA: Toda a gente me diz que devia pedir ajuda, porque quanto maior é a parede, maior o nível de dificuldade. Se for necessário sei que tenho com quem possa contar, mas habituei-me a trabalhar sozinha e passou a ser algo que faço naturalmente.
PARQ : Uma das figuras recorrentes no teu trabalho são os animais selvagens, estou até a lembrar-me daquele lobo sobre um carro que fizeste para a última edição do Festival Iminente. Como é que surgem esses animais e se relacionam com o universo urbano?
TA : Há muito tempo atrás quando comecei a definir mais o meu trabalho, que é muito figurativo e onde dou relevo ao retrato comecei também a juntar influências do universo das tatuagens e comecei quase espontaneamente a desenhar tigres e a estudar ao mesmo tempo o significado deles. Passava tudo por um processo de definir a minha mensagem enquanto artista. Esta ideia de equivalência de igualdade entre o homem e o animal ganhava rumo no meu pensamento. Se nos aceitarmos como seres animais, tudo se torna mais fácil relativamente a respeitar o próximo, sem desigualdades de género, raça, etc.
Eu comecei a incluir animais nas minhas pinturas para criar metáforas para estes instintos que existem em nós mas estão reprimidos talvez pela rotina do dia a dia. Comer quando temos fome, fazer amor, chorar quando temos vontade, parece fácil sermos honestos com o nosso corpo mas é mais difícil que aparenta. Um rugido de um tigre quando estamos frustrados ou um uivo de um lobo por sentirmos a falta de um ente querido, é algo com que todos nós nos conseguimos identificar.
No desenvolvimento do trabalho o lobo passou a ser prevalecente, porque é um animal que nos é mais familiar, também porque sendo um animal solitário também não sobrevive sem a sua matilha. Nessa altura lia igualmente um livro feminista , mulheres que correm com lobos, que também ajudou a consolidar esse imaginário de forma muito instintiva.
PARQ : Achas que o teu trabalho é algo mais instintivo ou algo mais pensado? Como foi evoluindo ao longo dos tempos esta questão?
TA : Quando penso no meu trabalho fico sempre muito inquieta, sinto um desassossego e esse fogo tem que sair eventualmete. Mas sou uma pessoa que pondera muito o que vai fazer, demoro mais tempo a pensar no significado do que na execução. Leio, vou procurando significado na poesia, para ver se consigo formar imagens na minha cabeça e só a partir daí resolvo materializar no papel. Ou seja demoro mais tempo a encontrar o conceito do que a executa-lo.
PARQ : O desenho flui muito mais facilmente?
TA : Sim flui, mas eu preciso de explicar as imagens que crio para mim, o que torna o processo menos imediato.
PARQ : E que leituras te estão a influenciar no momento?
TA : Esta exposição que estou a preparar agora para a Underdogs, surgiu por exemplo da leitura de Al Berto um poeta que gosto de revisitar. Ele tem uma compilação que se chama “Uma Existência de Papel”, onde fala do papel, da escrita e da folha e de como não há fonteiras entre isso e o corpo. Achei interessante refletir sobre isso porque era o que estava a procurar transmitir neste momento. O facto de trabalhar na rua, o carácter efémero e a ideia de abandono tornam-se ideias fortes em toda a equação da criação. Agora estou a rasgar parte dos meus desenhos e sinto nisso uma ligação muito directa com essas palavras do Al berto, com o facto de rasgar o papel, a materialidade desse corpo e todo o lado efémero.
PARQ : Podes dar uma antevisão do tua exposição na Underdogs?
TA : Desta vez vai ser diferente, porque eles convidaram-me para expor na Capsula E vou encarar a capsula como um espaço mais íntimo e propício para uma instalação. Como referi aparecem pinturas rasgadas. Gosto de trabalhar com essa ideia de fragilidade da aguarela que está na base destes trabalhos que ao serem rasgados ou pintados de negro conferem algo mais rígido na sua impressão geral
PARQ : Tens muitos colecionadores , gostas de conhecer os teus colecionadores?
TA: Não conheço todos, mas em geral gosto de os conhecer, saber que tipo de pessoas são, gosto da relação que se possa proporcionar. Para além do trabalho na rua sempre tive um trabalho para pequenos formatos, mais adequado a uma galeria. Um artista faz de tudo um pouco, é claro. Ter por detrás uma estrutura com a Galeria Underdogs facilita muito, são uma equipa incrível. Isso liberta-me para fazer outras coisas
PARQ : Também recebes encomendas privadas?
TA: Peças comissionadas? Sim, desde peças para casas privadas ou hotéis, etc.
Legendas
1 “ But first, some rebellion”, 2021, pintura, Galeria Municipal Alves Redol, Amadora
2 “until you and I died, and died and died again, 2020, Festival Iminente, Monsanto, Lisboa
3 “When the Rest of the World Has Gone to Sleep , 2020 Underdogs, Lisboa
4 “Animal”, 2019, Mural Miradouro Panorâmico de Monsanto, Lisboa
5 “OPHELIA” Conversas na Rua 2019, Mural, Amadora
6 “We Are The Flowers, 2021, Mural, Bairro do Esteval, Montijo