Ary + Isaac (t-guys cuddle too)
texto por Patrícia César Vicente
fotografia por Ary + Isaac
Há mais do que informação suficiente na internet sobre transexualidade. Social, médica, científica mas queria mostrar o que há de mais poderoso, o lado humano. O que as pessoas sentem, as dificuldades que enfrentam, as lutas, as derrotas e as vitórias. Estou em crer que se nos pudéssemos “sentir” uns aos outros, o mundo podia continuar a ser imperfeito mas seria um lugar melhor. E nós merecemos todo um lugar melhor para viver. A entrevista ao Ary e ao Isaac é honesta, sem floreados e acima de tudo, é uma carta de amor. De amor-próprio e ao próximo.
Agendámos a entrevista. Tentei preparar-me mas não queria ir demasiado bem preparada. Queria fazer perguntas que muitas pessoas querem ter resposta, mas nem sempre têm coragem de as fazer com medo de parecerem estranhas. Uma coisa que o Ary e o Isaac apenas vão saber quando lerem a entrevista: no dia em que que os entrevistei senti que não estive muito bem, que me atrapalhei a meio e que não saiu como esperava. Mas ao ouvir a entrevista para a escrever, emocionei-me. Pensei no quão incrível é conhecer pessoas que podiam ter arranjado desculpas, mas preferiram arranjar força para superarem todos e quaisquer obstáculos. Renderem-se a uma sociedade que os tentou colocar numa caixa nunca foi opção! Senti-me genuinamente feliz por os sentir felizes. É bonito e reconfortante sentir isto, de uma forma que não consigo explicar. Espero que também possam sentir o mesmo e que se sintam inspirados. Para serem quem quiserem ser. Porque no final, é só mesmo isso que importa.
PCV: Com que idade é que perceberam que não se identificavam com o sexo/género com que nasceram?
Ary: Eu cresci sempre com muita liberdade porque a minha mãe nunca teve liberdade. Para teres uma ideia, ela tinha os livros trancados em casa. Então, ela tentou dar-me a mim e ao meu irmão uma educação oposta. Eu com onze anos já vinha para o Bairro Alto, portanto, eu sempre vivi com muita liberdade. Mas com esta liberdade tu tens de te aceitar como tu és, estás bem como és. E demorei muito tempo a perceber que haviam realmente coisas que eu queria mudar e que eu não tinha de aceitar tudo o que eu era. E a minha identidade era uma delas. Eu assumi-me como mulher lésbica durante vinte e nove anos e só quando comecei a ler mais sobre género e não-binarismo é que eu percebi que aquilo era uma possibilidade para mim. Ultrapassei o rótulo e comecei a trabalhar num género que era muito saudável para mim. Mesmo em criança, eu conseguia estar a fazer a coreografia das Spice Girls em mini saia, como a seguir estar a brincar às Tartarugas Ninja. Sempre oscilei naquilo que se chamam os estereótipos de género. Sempre pedi para ter o cabelo cortado à tijela, perguntei porque é que eu não tinha uma pilinha a crescer, mas eu nunca dei muita importância a essas coisas porque à minha volta deixavam-me ser quem eu quisesse. Nunca houve uma batalha em casa que me fizesse questionar o que é que eu tinha de errado.
Isaac: Tens pessoas que a uma certa idade percebem “Este não é o meu género!” e eu não. Eu sempre me percecionei com o género masculino. Vestia-me de forma masculina, tinha brincadeiras do sexo masculino porque cresci com os meus avós e era tudo livre. No entanto, quando ia passar os fins-de-semana com a minha mãe, ela dizia-me “Tu não podes brincar com isto, não podes vestir isto.” E foi nessa altura que percebi que as pessoas me percecionavam como uma rapariga, mas eu vejo-me como um rapaz. Na escola eu queria jogar à bola, embora fosse péssimo. Fui jogar basquetebol, que era denominado um desporto de menino. Eu não gostava de brincar aos papás e às mamãs, mas se me perguntassem eu queria ser o papá. Perguntei à minha avó porque é que a minha pilinha não crescia. Sim, porque as crianças falam destas coisas. Portanto, eu entendi que me identifico como rapaz mas a sociedade entende-me como sendo rapariga. Tenho uma avó que sempre se interessou por tudo o que era psicologia, medicina e que me explicou quando eu tinha cinco anos que quando tivesse dezoito anos podia mudar de sexo. E entendi que ia ter de viver assim mais treze anos da minha vida. Foram treze anos em que não vou dizer que não foi doloroso, não sei o quão doloroso foi porque dos meus dezoito aos vinte e três anos já vivi um monte de coisas positivas. Sei que há muita coisa que não era aceite, não tinha muitos amigos, não era convidado para festas. Há coisas que só agora é que estou a processar e que na altura me afetaram imenso. Eu acho que tinha perceção de que era excluído, mas acho que gostava da ideia de ser excluído. E agora é que entendo que eu não gostava, mas foi uma ideia a que tive de me habituar. Agora é que eu percebo o quão cruéis as crianças são, o quão cruel é o nosso sistema de ensino que te obriga a usar rosa ou azul, ou então, tens de usar amarelo que é visto como uma cor neutra. Como se as outras duas cores tivessem género. Eu sofri com o sistema e quando fiz os dezoito anos não quis esperar nem mais um segundo. Acabei o secundário, fui para o IADE e a própria praxe do IADE foi uma família para mim. O próprio do traje é um kilt. Foram pessoas incríveis, ainda hoje são pessoas com quem continuo a falar. E fez-me muito bem.
PCV: O que impulsionou a tua mudança de género? Algum evento, situação? Foi crescendo? Como foi esse processo para ti?
Ary: Eu sempre tive desconforto com o meu peito, sempre treinei muito no ginásio com o objetivo de “se isto tira gordura, o peito é gordura, então isto vai desaparecer” e eu aplicava-me. Já tive um braço maior do que tenho agora, mas o peito continuava lá. Comecei a ver documentários sobre transição. E eu nunca ponderei a transição porque todos os documentários são feitos com aquilo a que se chama a transição total. O que para mim é um mito. Aquilo que é uma transição total, ou, completa é aquilo que me faz sentir completo. Por isso demorei a ponderar a transição, por achar que era apenas aquele o caminho até que finalmente conheci uma pessoa que se identificava como não binária e pedi-lhe para me explicar o que era. Porque toda a informação que encontrava não era como é agora. Falava-se muito pouco. E quando no ginásio eu cheguei ao ponto que era possível, em que o próximo passo era ter de fazer ciclos, percebi que não ia dar. A minha mulher é médica e eu pensei “não vai dar” e depois comecei a fazer testosterona para ver o efeito que ia ter no meu corpo. Porque para mim, na altura não era tanto sobre género, era o desconforto com o meu peito. E depois começou tudo a acontecer de forma natural e comecei a abrir um espaço na minha cabeça que eu não sabia que era possível. Estava constantemente a auto sabotar-me com ideias de “eu não posso querer isto”, ou, “eu não posso querer fazer aquilo, eu já vi isto nos documentários e eu não quero aquele final”. Tive a sorte de conseguir fazer tudo com bastante calma e estar numa relação, onde posso ser totalmente transparente. Fui balanceando e testando-me. Falava com a minha esposa e perguntava-lhe: “E se se eu tiver pelos na cara, será que isto vai ser um problema?”. E ela respondia-me: “Eu também não sei se isto vai ser um problema, isto é dia a dia. Tu também não vais acordar amanhã com barba, portanto, nós temos tempo de ir vendo. Até que chegou a um momento da minha transição em que eu percebi que sozinho, ou acompanhado era uma coisa que eu queria fazer. E comecei a fazer uma dose de testosterona mais elevada e marquei a minha mastectomia.
PCV: Ao longo da vossa infância e adolescência, algum episódio que vos tenha marcado de forma negativa e esteja relacionado com a questão de género ou orientação sexual?
Ary: Enquanto era mulher lésbica e andava de mão dada com as minhas namoradas, ouvia coisas do género: “Vocês precisam é de um homem!”, “Vocês não querem fazer uma coisa a três?”, ou “fufas de merda”. Mas não sinto nada que me tenha marcado porque eu também sempre fui do género “se queres resolver alguma coisa, resolvemos agora.” Por isso, não sinto que me tenha afetado, quanto muito dava-me mais gasolina para a minha luta.
Isaac: Acho que no meu caso, como sabes nós vivemos numa sociedade que nos quer categorizar e que nos quer meter um rótulo, antes de nós sabermos qual é o nosso rótulo. E enquanto eu cresci, eu sempre soube que era trans, sempre me senti atraído por mulheres. Toda a gente me queria colocar na categoria de lésbica. Achando que estavam a ser francosmmas só me estavam a ostracizar. Toda a gente conhece aquela pessoa que é super open mind e está tudo bem, mas depois quer colocar rótulos e querem forçar-te a sair do armário. Parem de colocar rótulos, antes de elas dizerem “eu sou isto”. Enquanto eu não fiz o meu coming out como trans, eu estava com pessoas da comunidade LGBT mas eu não tinha um sentimento de pertença como hoje tenho. Tens um sentimento de pertença quando as pessoas te leem corretamente e como tu és. Quando as pessoas não o fazem, não tens um sentimento de pertença, não importa se estás com pessoas cis ou hétero.
PCV: O que mais te custou/custa durante o processo de transição?
Isaac: A espera. Treze anos à espera, depois é a espera para teres testosterona, depois é a espera para mudares o b.i, depois é a espera para a operação, a espera para ver os efeitos, a espera para saber se és cis passável, depois é a espera para que todas as pessoas te tratem de forma correta. Há coisas que tu esperas ver no teu corpo passado um ano e que só vais ver daqui a cinco. Mesmo que noutra pessoa tenha sido logo passado um ano. As pessoas caem no erro de pensar “esta pessoa está a testosterona há um ano e já tem barba” e tu podes nunca vir a ter.
PCV: Em algum momento tiveram medo de se arrepender?
Ary: Eu tive medo de me arrepender, medo de não estar a fazer a coisa certa. Não é tanto o medo de voltar tudo para trás, mas sim, expor-me e depois sentir que tinha dito uma grande mentira a toda a gente. Disso tive medo, tens uma exposição enorme quando te assumes como trans. Eu senti pressão “quando eu comunicar isto, eu tenho mesmo de ter certeza”. A fase da dúvida existe para muitas pessoas. Porque é assustador estares a mudar a tua vida toda, os teus documentos todos e se for outra coisa? E se eu estiver enganado? Embora para mim, a nível físico fosse muito certo o que eu queria, mas eu também não sabia como é que ía lidar com uma série de coisas. Como os pelos faciais, por exemplo. Ainda para mais com a pressão de ter uma relação onde eu estava antes como mulher lésbica. Para mim havia muita coisa em jogo se não corresse bem. Estava a abdicar de uma relação de oito anos, já casado para uma coisa em que “se não for isto”… e é aí que entram os teus medos. Até ao dia em que passas para o outro lado do medo e é só ai que as pessoas são mais felizes.
Isaac: Eu estive à espera durante treze anos. Se fosse para ter dúvidas teria tido nesses treze anos. Eu nunca tive qualquer dúvida. Embora eu não tivesse tido uma representação trans, eu tive uma representação do que é ser homem. Sempre quis tudo aquilo onde me pudesse encontrar no espectro masculino fisicamente e para além disso eu fui desconstruindo para mim o que é ser homem e o que é ter um corpo de homem. Para além de ser homem, quem é que eu sou como pessoa. A dúvida nunca foi na transição, mas sim, no homem que eu quero ser daqui para a frente.
PCV: O papel da tua família na tomada de decisão e durante o processo?
Isaac: Nunca deixa de ser um choque. É sempre um choque para os teus pais. Mas eu sou uma pessoa extremamente independente, sentei-me e comuniquei: “Eu vou fazer isto! A partir de agora eu sou o Isaac, vocês têm o vosso tempo de adaptação, agora vou às minhas consultas.” Pode ser difícil de entender isto, mas na minha própria dinâmica familiar eu sou muito independente. Desde sempre que quando eu dizia quero isto, os meus pais já sabiam que era pensado, analisado e fazia tudo sozinho.
PCV: Qual é a melhor forma de dar apoio a quem está no processo de transição. Família, amigos ou até o Sr. Alfredo do café em frente.
Ary: Há uma coisa que me faz confusão. Tu vais com os teus cães ao parque e perguntam “Como é que se chama o seu cão?” e tu respondes que não é um cão, é uma cadela e as coisas mudam num segundo e as pessoas não ficam a olhar para a cadela para confirmar se é mesmo uma cadela, ou não. Mas connosco não. E as pessoas deviam ter esse instinto mais básico, deviam respeitar o que te é dito e aceitarem sem perguntas.
Isaac: Acho que as pessoas devem ser sinceras. Não sabem os prenomes simplesmente perguntem. Nós próprios damos espaço para erros ao princípio, é normal. Para as pessoas que são próximas de nós, que nos querem mesmo compreender e estar lá para nós existe o nosso canal no Youtube (TGUYSCUDDLETOO), existem imensos vídeos, o Google, a AMPLOS que é uma associação para pais, mães e todos os familiares e é importante.
PCV: E não é mau perguntar a uma pessoa trans como é que a devemos tratar? Não pode ser mal interpretado?
Ary: O melhor é assumir que se é ignorante neste assunto e dizer “Desculpa se estiver a ser incorreto contigo, mas o que é que tu queres?” O mais simples é colocar as cartas em cima da mesa do que se armar em pseudo que sei muito de género porque às vezes estás a falar com uma pessoa que tem uma aparência muito feminina e que não quer ser tratada no feminino.
PCV: Desde a vossa transição ainda continua a existir situações constrangedoras?
Isaac: Por acaso, comigo não.
Ary: Sim, da parte da família. São vinte e nove anos. Quando falam de mim e da minha esposa e dizem elas, eu revolvo-me e depois acalmo-me.
PCV: Alguma vez se sentiram desprotegidos em algum meio ou ambiente, ao ponto de temeres algum tipo de ataque por culpa de preconceito?
Ary: Nós nunca tivemos numa situação de confrontos de rua, mas pensamos em inúmeras situações que podem ser complicadas. Por exemplo, aeroportos. Sempre que estou num aeroporto penso “é desta”. Nós usamos uma prótese e penso que “vão ver que eu tenho aqui uma coisa que não é humana, vão-me levar, vão-me despir, possivelmente são transfóbicos, vão-me bater.” Estas coisas estão constantemente na nossa cabeça, o que envolve polícia, autoridades, ou quando tens de tomar banho num balneário público e à tua volta só estão homens. Eu como já fui mulher, sei o que é assédio. É uma memória que não é apagada. Estou sempre com medo, felizmente tenho um par de ombros que muitos homens não têm. Há uma série de situações em que a minha vida melhorou em mil por cento, mas a transição também traz um conjunto de novas situações que antes não eram um problema.
Isaac: Uma vez, ainda estava no início da minha transição e eu estava com a minha namorada. Ela tinha estado sempre com homens, nunca tinha tido muito contacto com a comunidade LGBT, ainda que fosse mil vezes por mais informada do que eu. Houve uma vez um tipo que nos começou a chamar de fufas, lésbicas e eu respondi-lhe “eu sou um gajo”. Não que eu levasse aquilo como uma ofensa, mas mais uma vez a minha identidade estava a ser atacada e ele começou a dizer “levanta a camisola para ver se és um gajo” e naquela altura ainda não tinha a mastectomia feita. Foi a única vez em que isso me aconteceu e a impotência que eu senti naquele momento é uma coisa que ficou guardada. É algo que eu quero trabalhar para não me voltar a sentir assim.
PCV: Há pessoas que parecem não entender, não sabem como se referir a pessoas trans e ainda há um enorme desconhecimento. Na tua opinião isso deve-se a quê?
Isaac: Acho que tem a ver com duas coisas, a ignorância e maior parte das vezes quem quer saber o que é cis-género, transgénero, fluidez de género vai ao Google. Uma coisa é perguntares o que é ser trans ou ser cis, outra coisa é perguntares às pessoas o que é que elas têm no meio das pernas. E normalmente são essas pessoas que sentem essa problemática. São as pessoas que querem perguntar como é que tens relações sexuais, são as pessoas que se querem meter na tua vida privada. Querem saber quanto é que o teu pénis vai medir, se queres ter pénis, ou, não queres.
PCV: Ainda existe tanto desconhecimento e tabú em volta de questões como estas que deveriam ser encaradas com naturalidade, porque nascemos livres para sermos quem quisermos. De que forma é que todos podemos melhorar para nos tornarmos numa sociedade menos preconceituosa?
Ary: Acho que acima de tudo é preciso empatia, tu só consegues estar bem com as pessoas se tu perceberes os problemas de cada um e isso viu-se agora muito com a questão do racismo. Tu viste muitas pessoas, assim como eu, que foi fazer pesquisa e perceber porque é que isto está a acontecer. Como é que começou e o que é que eu posso fazer para melhorar. Para que o mundo melhore acho que é preciso cada um sair da sua zona de conforto e pensar “será que eu sou preconceituoso?” “o que é que eu posso estudar ou tentar perceber para ser uma melhor pessoa”.
PCV: Em termos profissionais, é difícil para uma pessoa trans? Principalmente durante o processo de transição. Sentiram alguma dificuldade?
Isaac: Eu nunca me senti à vontade para trabalhar antes de ter a mastectomia feita. Eu tinha um peito grande, não conseguia de forma alguma me sentir bem. Não era possível de disfarçar. Eu sou barbeiro e naquela altura era impensável estar bem, estar confortável. Eu sou cis-passável, sei lidar com as coisas, mas eu quero estar num ambiente onde os meus clientes sejam bem-vindos e possa dar o meu melhor.
Ary: Eu trabalho com cinema e vídeo e é logo um meio onde existe maior abertura. Eu tenho um cliente há cinco anos que é o La Féria. E ele conheceu-me antes da transição, durante continuei sempre a trabalhar com ele. Nunca senti qualquer preconceito, houve a fase de adaptação. Acho que por exemplo, para mulheres trans a situação profissional é muito complicada, são vistos como as bichas que querem ser mulheres porque o choque no atendimento ao público acaba por ser muito maior e causa muito mais desconforto, ao qual nós felizmente não passámos.
PCV: Existem apoios do estado? Recorreram ao particular? Alguém que não tenha recursos financeiros e dependa de apoios estatais, em média têm ideia dos prazos de espera, ou de como é o processo?
Isaac: Honestamente a resposta mais sincera é depende. Tens muitos profissionais em hospitais públicos que não percebem nada de género. Vão julgar-te pela aparência, vão julgar pela tua expressão de género, logo aí, o tempo pode ser diferente. Não nos podemos esquecer que estamos no meio de uma pandemia e portanto, o que é que são tempos hospitalares neste momento. Isto é válido para qualquer tipo de consulta. Depende para que hospital é que vais. Se as pessoas quiserem conselhos podem-nos questionar qual é o melhor. E depende também, podem fazer como eu que fiz parte no público e outra parte no privado para despachar algumas coisas.
Ary: Acho que podemos dizer com segurança que no público deves demorar o dobro ou o triplo do tempo do que no privado. Até porque por exemplo, no público tens uma cirurgia marcada. Vais fazer a cirurgia a Coimbra, tudo atrasa e a tua cirurgia é remarcada para daqui a dois meses.
PCV: De que forma é a mudança de sexo teve impacto em todos os aspetos da vossa vida. Social, laboral, sexual, etc.
Ary: A minha vida melhorou a mil por cento em todos os aspetos. Atualmente sinto-me muito bem comigo, acordo com energia, vivo o meu dia sem preocupações, antes era capaz de demorar três ou quatro horas a sair de casa porque tinha de pôr faixas no peito e as faixas não ficavam bem. Hoje em dia se é para ir à praia ou à piscina, vou. Nada é um problema. Podes literalmente viver a tua vida como todas as pessoas o fazem. Eu acordo, quero ir a algum lado e vou. Sem ter que estar a pôr faixas no peito. É uma liberdade sem igual, o facto de te sentires bem contigo torna-te muito mais confiante. Consegues ter mais espaço criativo porque não tens aqueles pensamentos negativos a toda a hora. Acordas, vais trabalhar, fazes o que gostas e tudo deixa de ser um problema.
Isaac: Para mim é exatamente como o Ary disse, a diferença é que eu não conseguia fazer com tape. Para mim era full body, no Verão eu vivia de noite, só saía a partir das sete da tarde e às dez da manhã estava na cama. E era agressivo, não a nível de violência, mas eu tinha uma postura agressiva. Porque eu não queria que tu tivesses chances de me atacar, então, eu atacava primeiro. E tudo isso passou com a transição.
PCV: Qual o melhor conselho que podes dar a quem não sabe como agir, para quem se sente sozinho com as suas dúvidas. Há muitas pessoas que se limitam a investigar na internet e não falam abertamente com a sua família, nem com ninguém.
Isaac: O ideal é sempre recorrer a associações, se és um familiar que precisa de aprender a lidar com uma pessoa trans na família, a internet é positiva, têm os nossos vídeos que ajudam imenso, mas recorre a associações. A pessoas com competências profissionais que te ajudarão a arranjar ferramentas para lidares não só com o preconceito, mas podem ajudar o teu familiar. Se és uma pessoa LGBT que tem dúvidas é muito bom teres um grupo de amigos com quem possas falar, mas também recorre a uma associação para teres ferramentas para lidares com a sociedade. Na ILGA temos o serviço de apoio psicológico, temos linha de atendimento telefónica que funciona de quarta-feira a sábado, temos vários grupos para pessoas lésbicas, gays, trans, tudo isto são óptimas ferramentas que as pessoas têm á sua disposição.
PCV: Vocês têm um canal de Youtube, o T Guys Cuddle Too, que aborda diversos temas relacionados com o género, o processo, etc. Como é que surgiu a ideia? E vamos ser realistas, é preciso uma enorme de coragem para o fazer. A exposição, os amigos, conhecidos, etc. Quais foram as vossas motivações para o fazer? E como é que lidam com os comentários?
Ary: Isto começou porque tanto eu como o Isaac começámos a nossa transição sem qualquer tipo de apoio, no sentido de alguém em Portugal que estivesse a passar por isto e que falasse sobre isto, que estivesse a colocar conteúdos semanais, a relatar isto. Que explicasse como é que o podes fazer, onde é que o podes fazer, com quem, onde é que deves ir, o que é que vai acontecer, o que é que podes esperar, como é que lidas com a família, portanto, nós criámos o canal que nós queríamos ter tido ao crescer. Pelo meio nós percebemos que para além das pessoas trans que estavam a aceder ao nosso canal havia uma quantidade de pessoas cis, pessoas héteros, familiares, professores, sexólogos, psicólogos que estava a recorrer ao nosso canal para retirar informação. E foi ai que pensámos que tínhamos de tornar o canal muito mais amplo e abordar muitos mais temas. E foi a partir dai que até surgiu o convite para darmos uma aula em conjunto para a sociedade de sexologia portuguesa. Acabámos por perceber que o canal está a ser uma ferramenta muito importante para profissionais de saúde, para familiares e pessoas em geral para se informarem.
PCV: Se as pessoas ainda tiverem dúvidas depois desta entrevista, podem enviar-vos perguntas?
Ary: Sim!
PCV: No ano de 2020 estamos a ver duas partes do mundo em conflito. Os que ainda são preconceituosos e os que lutam contra o preconceito. No ano em que mais manifestações acontecem um pouco por todo o mundo a favor da igualdade também está a ser o ano em que assistimos a mais notícias que relatam crimes de ódio. Como é que vocês entendem isto?
Isaac: Estas coisas sempre aconteceram, simplesmente nunca houve tanto streaming como neste momento. Havia pessoas sensibilizadas para as questões de racismo, transfobia, homofobia, xenofobia, mas neste momento as pessoas sentem a necessidade de partilhar e ser a resistência, porque do outro lado existem pessoas que estão a dizer ao fascismo, à extrema-direita e ao racismo sintam-se orgulhosos. Portanto, as pessoas que sempre sentiram sensibilidade por estas questões sentem a necessidade de fazer este streaming e expor situações e as pessoas racistas, homofóbicas, etc. E nós que somos a resistência temos de continuar e calar isto, não há outra opção.
Ary: Sabes que isto está numa fase em que está mesmo dividido. Neste momento eu sinto a raça humana dividida como os bons e os maus. E o que acontece é que quando tu dás espaço público e poder a pessoas com ideias extremistas e que ferem outras, as que estavam debaixo das pedras também podem dizer coisas em voz alta. Pensam: “Se aquela pessoa manda nisto, então, eu também posso dizer”.E começa a haver esta divisão, até que um dos lados vá ganhar mais.
Isaac: Esperemos que seja o nosso!
E será Isaac! Por ti, pelo Ary e por todas as pessoas no mundo que têm o direito de serem elas próprias, de serem quem quiserem e de amarem livremente. Por todas as pessoas que ainda são excluídas, mas deixarão de ser. Por todas as pessoas que se libertam diariamente de uma sociedade que as condena sem razão. Por todas as pessoas que vão ler esta entrevista e estão do lado da resistência. Por todos os pais que têm medo pelos seus filhos, e por todos os filhos que ainda têm medo de ir para a escola. Pela liberdade de expressão, género ou sexualidade. Caso tenham dúvidas assistam aos vídeos do TGuysCuddletoo no Youtube. Mantenham-se informados e sintam-se amados por serem exatamente quem são ou queiram ser.
Entrevista por Patrícia César Vicente.