Mor
Pedro Sottomayor
Texto por Carla Carbone
Num apartamento particular situado em Lisboa, na Avenida de Berna, foram apresentadas, no mês de Novembro, as mais recentes criações da editora Mor, Design Made Simple. O primeiro encontro com o espaço da exposição MOR realizou-se por meio do vislumbre de um candeeiro, fixo, sobre a parede, e que dimanava uma luz, quente, e densa. Facultada por uma auréola de luz amarelada sobre a parede, a debruar a orla do objeto.
A forma era circular e o olhar detinha-se sobre a sua superfície convexa. O efeito marmoreado era fino, cerca de oito centímetros, e o responsável por deixar passar a luz, trespassando as manchas que atravessavam a superfície curva.
Uma lua, um planeta, um sonho ancestral, perpassava a mente. Um lugar cósmico, e espiritual, impunha-se sobre esses objectos suspensos.
A experiência enviou-nos/reportou-nos para as imagens que vemos, quando somos presenteados com um grande planeta, através das grandes lentes telescópicas, mas com a diferença aqui, de que podemos demorar o olhar e saborear manchas que nos aludem a mundos distantes e fantásticos.
Os objectos podem ter uma utilidade, mas também podem ser evocadores de outras possibilidades. Podem fazer-nos sonhar, jogar, evadir-nos da realidade e das coisas mundanas, ou até invocar histórias, ou memórias.
Longe vai o tempo em que, no design, se suprimia e reprimia a biografia do objecto, ou, por outras palavras, se anulava a referência histórica, ou ainda, a sua relação com o lugar e com a tradição – e até com a materialidade, isto é, a aceitação da propriedade natural dos materiais, das suas características próprias. Em vez de as tentar domar, deixar que elas próprias tomem o seu rumo, e trilhem o seu caminho. Pedro Sottomayor, ao contemplar as suas próprias peças, comentou: “Estas peças trazem o tempo com elas … por camadas, é impressionante”.
A pedra, mais especificamente o mármore, traz o registo do tempo, tempo longo e remoto.
As peças Furna, de Eneida Lombe Tavares e João Xará, repensam a tradição num lugar de primeira linha. Longe do tempo em que as artes e ofícios e o design viviam de costas voltadas e se considerava que o artesão não tinha nada a oferecer ao designer, e vice versa.
As coisas mudaram quando, do artesanato, se começou a observar que poderia ser um forte aliado do designer, um valor acrescentado, e uma solução para a sustentabilidade. Muito pelos materiais da região e o saber cultural local.
A MOR transmite um princípio de relação entre artesão e designer, de respeito e partilha de saberes.Há um diálogo, e um enriquecimento de ambos os lados (Pelo menos era assim que deveria ser). “Se o artesão tem a possibilidade de diálogo, de interlocução, o designer ganha nesse contacto, não só uma sabedoria empírica popular, como também um mercado de trabalho, até agora insuspeitado”.
A industrialização criou o design, mas também afastou o corpo do design, da manipulação da matéria, do fazer usando as mãos, Numa comunhão entre o belo e o útil, que para Paz são “inseparáveis”, “o belo é belo porque é útil”.
“A beleza chega por acréscimo, como os cheiros e a cor às flores”.
Paz dava o exemplo da representação da “mão da mulher” no período do barroco, Dizia: “é bela por ser de carne e osso, não de marfim, nem prata, não porque resplandece mas porque agarra”.
Tomemos como exemplo as peças Furna, em vime, de Eneida Lombe Tavares e João Xará. São trabalhadas com as mãos pelo artesão, as suas tramas vão formando imprevisíveis ondulações. Ao encostar os filamentos à pedra, o artesão também vai enformando a peça com a ajuda da própria planta dos pés. Em simultâneo, com as mãos, aconchega, e enforma o vime. Com o esforço, os pés do artesão vão-se arqueando, e com a ajuda da pedra, vão curvando a matéria até aparentar uma concha irregular.
Pés e mãos, em simultâneo, trabalham a matéria, e criam a tal relação do corpo com o objeto, que o artesão possui e que se foi perdendo ao longo do tempo.
O artesanato, para Paz, não nos “convoca únicamente para uma relação com a utilidade, mas também para uma relação com os nossos sentidos”. Ela faz-se notar pela capacidade que tem de nos atrair pelas emoções. Ao contrário do objeto industrial que, segundo o autor tende a desaparecer como forma, e a confundir-se com a sua função: “o objeto industrial não tolera o supérfluo”. Ao passo que o artesanato, lugar intermédio entre a arte e o design, depende precisamente dessa relação com o corpo. Paz reforçaria ainda mais, não se trata de “uma relação mas um verdadeiro contacto”, o corpo “como participação”, como “vida física compartilhada”.
Desse modo, concluímos, em conjunto com Octávio Paz, que o objeto artesanal está feito para as mãos, ou seja, “para o contacto corporal, o objeto industrial para um contacto functional, e o objecto da obra de Arte, para uma relação semi-religiosa.
A mostra de peças, perfeitamente integradas no espaço, e obedecendo a uma tipologia decorativa específica, compreende a seguinte colecção: os cobertores policromáticos Crag, de Eduardo Aires, as poltronas Lisboa de Keiji Takeuchi, os vasos Torre, de Julien Renault, a cadeira Alcântara e o guarda-roupa Alfama desenhado por Siza Vieira, as mesas e secretárias Front de Pedro Sottomayor, a mesa Migo e a cadeira Allay, de Daniel Schofield, as cadeiras e mesas Frame, em madeira, de Depping & Jorgensen, os candeeiros Bulb de Pedro Sottomayor, entre outros objetos, como os blocos Leve, trabalhados em mármore, de Birgitte Due Madsen, ou os espelhos em forma quadrangular e moldura em madeira.
A curadoria desta exposição foi realizada por Pedro Sottomayor, e contemplou a presença de designers portugueses e estrangeiros.
texto de Carla Carbone para PARQ_77.pdf (parqmag.com)