Espaço Negativo

Texto por Rafael de Sousa Vicente

A outubro de 2020, Maria Carlos Baptista vence o concurso Bloom SS21 do Portugal Fashion. A 5 de março apresenta a sua coleção de outono-inverno 2021 “Espaço Negativo” na Paris Fashion Week, e a 18 de março abre o Portugal Fashion The Sofa Edition. Nas suas investigações, a designer de Lisboa tem procurado equacionar como é que o corpo, o movimento e o espaço se podem relacionar. Tem proposto conceções de silhuetas longas, volumes e formas acentuados, ao longo de uma paleta predominantemente escura, que começa a aceitar os tons claros e vibrantes como um complemento delicado. Maria Carlos Baptista procura “intemporalidade”, mas vê o seu talento quebrar a barreira do tempo, começando a preencher um espaço na moda que só a si lhe poderá pertencer. Um espaço negativo.

PARQ : Do Bloom para a Paris Fashion Week, e de volta para o Portugal Fashion – saltos grandes e rápidos. Conta-nos pormenores da transição e como te sentiste durante a mesma. Sentimentos e emoções, para alguém que está a dar os seus primeiros passos na moda desta forma.

Maria Carlos Baptista: Foi um conjunto de emoções. Desde felicidade a medo. Ter sido uma das vencedoras do Concurso Bloom abriu-me muitas portas, e foi um ponto de viragem para o caminho que neste momento quero dar à minha vida. Enquanto estudava não pensava sequer ser designer de Moda e criar marca, tinha definido que iria tentar trabalhar para uma marca e ganhar experiência e que o tempo diria qual seria a trajetória a seguir. O Bloom veio mudar tudo, com a recetividade e curiosidade que tenho tido, a minha perceção do que o meu contributo para a indústria pode ser, ganhou peso e abriu-me os olhos para poder focar-me no meu processo criativo e valores que defendo relativamente à produção e criação de produto. Ter participado na Paris Fashion Week foi um convite inesperado, mas que ainda validou mais a minha visão, e não tinha como não aproveitar a oportunidade. Foi uma fase muito turbulenta, foram muitas emoções ao mesmo tempo. Eu tanto estava feliz, como ficava ansiosa pela responsabilidade de ter aceite o desafio de fazer uma coleção em meu nome numa semana de Moda como a de Paris. Ter aberto o Portugal Fashion foi mais um momento que me deixou radiante, não há melhor retorno que ter o meu trabalho reconhecido como criadora, não podia estar mais grata pela oportunidade e por ver o meu nome no cartaz das duas edições deste ano.

PARQ : Fala-nos da coleção “Espaço Negativo” – processo conceptual, o que significa para ti e o que pretendes transmitir?

MCB: O ‘espaço negativo’ surgiu durante a criação de um projeto na escola, e acho que ficou comigo desde aí. O ‘espaço negativo’ é todo o espaço que nos rodeia e que não está preenchido fisicamente. Na minha realidade, esse espaço é preenchido por imagens e memórias, como uma ‘cloud’ de vivências, desde as mais recentes e que ainda são claras e visíveis, até às mais distantes e turvas. Este ’espaço’, surgiu como consequência do confinamento do ano passado, pela constante obrigação de lidar com a minha cabeça diariamente, e não ter escape. A finalidade não é necessariamente transmitir uma ideia, mas que individualmente seja feita uma leitura pessoal da coleção e de como a quis apresentar, ou seja, tudo o que for recepcionado está correto, por consequência de sermos todos unidade e termos um trajeto de vida único. O ‘espaço negativo’ é um pedaço de mim, foi uma forma de o começar a trabalhar, e foi a forma que arranjei de passar um bocado de mim a quem o experienciou.

PARQ: Como foi criar esta coleção, não só num ano atípico, mas em tempo limite e com recursos limitados?

MCB: Desafiante não é suficiente para definir o processo de execução da coleção. O processo criativo foi fácil, porque estava bem sedimentado e a ideia já existia, a parte de confeção é que foi o verdadeiro desafio. Fiz a coleção toda sozinha, em casa, confinada com as minhas máquinas de costura num quarto que estava vago em minha casa em Lisboa. Com a coleção a ser apresentada em Paris, vi-me com ainda menos tempo para materializar a coleção, pelo que meti logo mãos ao trabalho. Tratei de moldes, fazer os prints, contactar com fornecedores, aguardar encomendas, tudo em tempo recorde. Olhando para trás nem sei como é que consegui tratar de tudo, devido às limitações, mas acho que quem corre por gosto não cansa e agarrei-me muito ao voto de confiança que foi feito em mim. Era acordar às 7h da manhã, fazer as refeições em frente à maquina de costura, não dar pelo tempo a passar, e foi este loop várias semanas a fio. Mas não fazia nada diferente, o processo e as limitações ajudaram muito a ver que tudo o que aprendi ficou comigo, e que a resiliência é um fator muito importante nesta área.

PARQ: O quão importante é uma plataforma como o Bloom e o apoio do Portugal Fashion aos designers emergentes?

MCB: Acho que todos os jovens designers, mesmo que não saibam o que querem fazer dentro da área devem arriscar e candidatarem-se a concursos. Surgem imensas oportunidades, ganha-se visibilidade e contactos de uma forma que geralmente um designer emergente dificilmente consegue ter, e há imenso talento em Portugal que não é visto nem reconhecido. Havendo este tipo de plataformas que apostam em nós e nos ajudam, é de extrema importância e relevância todo o apoio que nos dão.

PARQ: A mudança da área de dança para a moda: como lidaste com o processo? E atualmente, transportas a dança para a moda de alguma forma em particular?

MCB: A mudança foi uma resposta ao não poder fazer da dança a minha vida. Inicialmente foi de difícil aceitação, mas o tempo cura tudo. Tenho a certeza que a dança será um fator que me definirá como criativa e estará sempre, direta ou indiretamente, em tudo o que crio. Foi um complemento que me fez crescer a ver as coisas de outra forma, a criar um mundo muito próprio, a absorver tudo de forma diferente. Há 3 fatores que me influenciam imenso na criação: o corpo, o movimento e o espaço, e são pontos nos quais vou sempre ter atenção, pelo conforto das peças, pelo caimento do tecido, pela resposta da peça ao movimento, pela forma como a peça se encaixa visualmente no espaço que o rodeia, de que forma a roupa condiciona ou não o movimento.

PARQ: Entras no mundo da moda, numa moda digital: apresentações digitais – O que achas deste formato?

MCB: É um novo formato, e estou muito recetiva a esta nova dimensão que se está a criar. Apesar de ser um ‘void devido à quantidade de informação a que estamos sujeitos , é uma oportunidade do nosso trabalho chegar a mais pessoas, mais rapidamente. Mas estou ansiosa a aguardar pelo dia do meu primeiro desfile.

PARQ: E como foi a tua experiência de realização de uma apresentação digital?

MCB: Foi extremamente gratificante. Desde início, e ainda por cima com as limitações do confinamento, toda a disponibilidade e agilização do processo foi extraordinária por parte de toda a equipa envolvida. Tive a oportunidade de trabalhar com pessoas que realmente queriam saber de que é que o ‘espaço negativo’ se tratava e de como eu queria que a ideia ganhasse vida. Foi muito bom ver o esforço conjunto que foi feito para materializar a minha ideia e de garantir que tudo estava de acordo com o que tinha idealizado. Foi uma experiência que vou guardar comigo porque apesar de todo o distanciamento, houve uma aproximação e entreajuda muito grande.

PARQ : Para além de entrares na era da moda digital, entras também já num mundo de moda sustentável. Como a vês e como a aplicas na tua moda?

MCB: Acho que a nossa missão como novos designers é reeducar o modelo de consumo. Não podemos continuar a viver em excesso, e temos de parar e valorizar mais o que é feito localmente e por criadores. A sustentabilidade sempre foi uma preocupação da minha parte, e tento ser sustentável na escala em que produzo. Desde as matérias e a sua composição, até reutilização de peças que já não teriam uso através de processos de upcycling.

PARQ: Desde a coleção, às apresentações em si, que referências criativas, culturais, na industria te inspiraram?

MCB: Muito do que me inspira vem das experiências que vivencio, das pessoas que me rodeiam, dos espaços que frequento, da música que oiço, e da leitura que faço de todas estas referências. Acho que assim é pela noção de que o nosso contributo como criadores é um elemento diferenciador, e todos somos únicos, por isso acho que a forma de acrescentarmos algo a esta indústria é sermos fiéis a nós mesmos.Em termos de referências, desde fotografia a dança, da arquitetura a pintura. Helmut Newton, Anne Therese Keersmaeker, Juliã Sarmento, Mark Rothko, Mark Borthwick, Jurgen Teller, Mike Parr, Shigeo Okamoto, são alguns nomes que me surgem agora.

PARQ : Iniciaste a tua carreira agora, num período em que a moda atravessa um contexto extraordinário. Que questões, desejos, preocupações, objetivos tens em mente?

MCB: Tudo são preocupações e questões neste momento. O meu objetivo é encontrar o meu lugar na indústria, continuar a ter recetividade do público, e poder continuar a criar porque é o que me dá mais prazer.

PARQ: Estás a criar a tua identidade da tua marca com base em algo especifico, numa narrativa ou linguagem visual em particular?

MCB: Acho que a identidade da minha marca se baseia muito na perceção que tenho do mundo e de como manifesto e mostro como pessoa, isso cria o personagem que é a marca. Há muitos pontos que definem a marca, mas acho que intemporalidade é um dos mais importantes e que será sempre relevante.

PARQ: Como estás a aguentar o desejo e entusiasmo de realizar um desfile no seu sentido clássico? Ainda não sentiste uns bastidores verdadeiramente ao rubro, imprensa a abordar-te, e a “caminhada da glória” com público a aplaudir-te no final do desfile.

MCB: Aguardo ansiosamente por esse dia. O mais importante em qualquer área são as pessoas, e o que se sente nesses eventos é inigualável, a correria e adrenalina, o stress, é o culminar de muito esforço e dedicação condensado em horas. Acho que vai ser o meu voltar a pisar o palco e receber calor humano através dos aplausos.

Texto de Rafael de Sousa Vicente para a revista PARQ #70 , Junho 2022 PARQ_70.pdf (parqmag.com)