Pós – Dama
texto de Inês Monteiro
Desde pequeno que Júlio Dolbeth tem o desenho muito presente na sua vida. Artista, ilustrador e professor, foi co-fundador da galeria e associação cultural Dama Aflita, no Porto, um espaço pioneiro em Portugal na exposição e venda de trabalhos de ilustração, que além de ter trazido nomes relevantes do circuito global, conseguiu também chamar a atenção para os talentos nacionais, abrindo mais possibilidades de os fazer circular internacionalmente.
De rostos aleatórios ao rosto de amigos, faces nunca antes imaginadas e proporções desproporcionadas, Júlio Dolbeth fez da ilustração a sua melhor amiga e companheira de vida. Angola foi a terra que o viu nascer, mas é no Porto que vive e trabalha traduzindo o amor que sente pela ilustração em exposições e galerias. Mais do que uma arte, o desenho tornou-se numa língua, num modo de comunicação e uma forma de passar para o exterior o mundo interior. A gentrificação obrigou a galeria a fechar mas o amor pela ilustração continua muito presente.
Frequentaste o curso de Design de Comunicação na escola de Belas Artes da Universidade do Porto onde hoje lecionas. Quando é que a ilustração começou a chamar a tua atenção e se tornou uma prática mais regular?
Quando estudei na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, existia uma partilha muito grande entre o design e as artes plásticas, o que sempre me fascinou. Participava nas aulas de pintura e sempre senti que era naquele lugar que me sentia mais confortável. O design conquistou-me através do desenho, mesmo que na altura não tivesse grande consciência das possibilidades todas dos territórios da ilustração. Percebi que seria por aquele caminho que mais gostava de comunicar.
E quando é que o design gráfico ficou arrumado de lado, se ficou?
Sim ficou, de certa maneira comecei progressivamente a deixar de aceitar trabalhos de design. Fiz algumas coisas pontuais, na maioria colaborações. Penso que as últimas coisas que fiz com mais visibilidade foi o design da galeria Dama Aflita, que fundei com a Lígia Guedes e o Rui Vitorino Santos em 2008.
Sentes que o teu passado como designer gráfico é uma mais-valia para a ilustração que fazes atualmente? Encontras no desenho atual algo que liga com o passado?
O design ensinou-me a ser mais organizado, a pensar em composição de forma mais depurada. Acho que sempre me expressei através do desenho numa abordagem mais impulsiva e emotiva, enquanto no design aprendi a organizar esses impulsos.
Desenhar sempre foi para algo natural, uma faculdade inata ou algo que foste cultivando ao longo do tempo?
Acho que a aptidão nunca é inata, mas vai-se construindo com o trabalho. Já a sensibilidade sempre a tive, sempre desenhei muito. Olhando retrospetivamente lembro-me de aperceber em miúdo da frustração de não conseguir desenhar o que via, cresci com esta perspetiva realista das coisas. Essa frustração talvez tenha sido o maior alicerce para a prática do desenho, perceber que não sou realista, mas sustentar a prática pela tentativa e erro.
Quais eram as tuas grandes influências inicialmente?
Edward Hopper, David Hockney, Amadeo de Souza-Cardoso, Eduardo Batarda, Álvaro Lapa.
E atualmente, quem que veneras?
Tantos que é difícil escolher. Kiki Smith, Kara Walker ou Raymond Lemstra são os que continuam no topo da minha lista.
A ilustração tem vindo a ganhar cada vez mais visibilidade, atualmente já tem um estatuto de arte, é colecionável e os ilustradores acabaram por ganhar uma reputação que até agora não tinham. Como vês essa alteração de estatuto?
Acho que já estava na altura de isso acontecer. A ilustração era considerada uma arte aplicada ou arte menor, o que não só é injusto, como também elitista. Hoje em dia a ilustração tornou-se mais visível, em grande parte por uma nova geração de artistas que contribuem para o seu reconhecimento. Fico feliz ao ver originais de autores que gosto em galerias ou nas paredes da minha casa.
E em Portugal achas que está a acontecer o mesmo?
Sim, sinto que existe uma comunidade muito forte e em crescimento de ilustradores em Portugal. Com a Dama Aflita senti que tínhamos um público informado e curioso que com grande generosidade e alento alimentou o nosso projeto.
No teu caso, o que sentes que foi fundamental para que o teu trabalho ganhasse maior notoriedade?
Acho que o mais importante foi ter reconhecimento pelos meus pares. Começar a ser convidado para participar em mostras e exposições coletivas, principalmente com tantos ilustradores que admiro.
Em que medida a galeria que abriste no Porto foi fulcral para a divulgação, não só do teu trabalho, como o de muitos outros nomes?
Acredito que a galeria contribuiu para divulgação da ilustração, senti que tínhamos um público que foi crescendo de exposição para exposição. Já existiam outros projetos semelhantes, mas penso que como espaço de galeria exclusivamente dedicado a esta área, fomos pioneiros. Sinto que deu força a outros projetos que surgiram a seguir numa estratégia de comunidade. Uma das definições mais presentes que tenho da ilustração em Portugal é a palavra comunidade e acrescento ainda partilha e generosidade.
E perante o sucesso que foi a Dama Aflita, porque tiveram de fechar?
A Dama Aflita foi vítima da gentrificação. Abrimos uma galeria numa rua do Porto só com lojas de madeiras e móveis, o que no início nos levou a uma narrativa de bairro muito interessante. Claro que a baixa do Porto iria rebentar, era um diamante em bruto por lapidar. Em qualquer cidade europeia, o centro é o sítio onde tudo acontece e o centro do Porto estava adormecido há anos. Assistimos à transformação da rua e das lojas a fechar para dar origem a bares e restaurantes. De certa maneira, seria uma questão de tempo até irmos “cantar para outras freguesias” e dar lugar a comércios mais lucrativos. Provavelmente a rua podia ter crescido noutro sentido, a parceria que tínhamos com a loja Matéria Prima era um casamento perfeito: ilustração e música com edições independentes, o que poderíamos querer mais?
Hoje em dia, ainda faria sentido começar um projeto como a Dama Aflita ou divulgarias o teu trabalho nas redes sociais?
A Dama Aflita faz sempre sentido. O projeto tinha como objetivo divulgar o trabalho de artistas e ilustradores, mas acima de tudo proporcionar uma tela em branco para experimentar. Interessava-nos diluir as fronteiras convencionais da definição de ilustração, e isso aconteceu com muitos projetos desenvolvidos para aquele espaço. Criámos uma série de ações que ganharam força pela proximidade, como a Dama Talks, onde convidávamos os autores a falar sobre o seu trabalho, promovemos workshops, concertos, etc. No fundo, interessava-me a ideia da ilustração pela sua componente transversal a vários comportamentos ou narrativas. Gary Baseman, numa entrevista referiu que o seu trabalho se definia como Pervasive Art, um trabalho que pode habitar múltiplas ocorrências desde a street art, a escultura, o vídeo, entre outros. É assim que vejo a ilustração.
As redes sociais foram fundamentais para a internacionalização do teu trabalho?
Acho que sim, contribuíram para compreender e conhecer as pessoas que gostam do meu trabalho. De certa forma, ampliam o alcance sem intermediários, sinto que as pessoas que me seguem nas redes, gostam daquilo que faço e isso só por si já é muito bom para continuar a fazer.
Muito do que desenhas são referências a ti e ao teu universo. Como é que surgem as temáticas que vais desenvolvendo?
É exatamente isso, o meu universo. Mesmo que na maior parte das vezes ficcionado. Neste momento tenho muito a prática a desenhar amigos ou pessoas que gosto, por vezes sou o chato dos jantares que vem com o caderno atrás. Gosto muito destes resultados, muito espontâneos, divertidos, muitas vezes volto a eles e refaço-os ou edito digitalmente.
Como descreverias a tua geração?
Acho que a minha geração é batalhadora, sinto-me rodeado de pessoas que vão à luta e trabalham pelos seus ideais. Claro que chega a um momento da vida em que a utopia começa a dar lugar a questões mais práticas de sobrevivência. De certa maneira, aprendi a não cruzar os braços e investir naquilo que me apaixona, como foi o exemplo da Dama Aflita.
Relativamente às gerações futuras, em que posição te colocas?
É estranho mas ainda não sinto muito o fosso geracional, sinto que pode chegar o momento em que serei o boomer da festa, mas para já acho que ainda consigo comunicar com os meus pares mais novos.
O teu trabalho também tem sofrido alterações no que toca ao estilo. Hoje em dia o lápis e mesmo a pintura tem aparecido com mais regularidade, como foi esse processo?
Durante muito tempo era quase só o lápis ou o digital. Acho que se devia a uma questão de prática, trabalhava na minha mesa e pronto. Por vezes, espalhava desenhos pela sala de jantar e ficava com a casa intransitável durante vários dias. Com a conclusão do doutoramento aluguei um atelier partilhado com outros ilustradores e artistas e consegui dedicar-me mais à pintura e outros materiais. Com o confinamento voltei um pouco ao lápis e essencialmente ao digital.
No teu caso, a lógica de exposição alterou a perceção da realização de um trabalho ilustrativo?
Talvez me enquadre neste mar de possibilidades onde a ilustração não seja apenas editorial. Na minha opinião a ilustração anda de mão dada com a narrativa, depois pode-se materializar num livro, num cartaz, num emoji, num prato ou num desenho exposto numa parede.
texto de Inês Monteiro para Parq #69 Março 2021 PARQ_69.pdf (parqmag.com)