texto por Sofia Seixo Garrucho
fotografia de Miguel Domingos
Entre a performance e o cinema, a dança e a moda, Ivvi Romão, tem-se distinguido nas mais variadas disciplinas artísticas. Pelos espaços por onde passa, tem consciencializado as pessoas sobre questões de género, nomeadamente a transexualidade ou a binariedade que nos foi imposta pelo pensamento normativo de origem cristã e colonial. Lançou recentemente, o FundFest “um festival para reunir e celebrar a diversidade de ser quem se é”, onde procura dar visibilidade a artistas LGBTQIA+ emigrantes da cena underground Lisboeta. Ivvi é capa da nova edição da Parq e dá uma entrevista à PARQ, onde explora algumas das questões que importam na sua vida.
PARQ: Tens despertado grande interesse mediático com entrevistas a vário meios de comunicação. Demonstras ser uma pessoa detentora de um grande auto-conhecimento e de uma garra imensa para viver e ser bem sucedida numa sociedade cis-normativa branca. Sentes que depois das várias lutas travadas, nomeadamente no universo da moda, o teu corpo começa a ser mais aceite na indústria?
Ivvi: Em relação a Portugal, acho que a moda em Portugal se está a desenvolver bastante e, felizmente, tem marcas como João Magalhães, Marques Almeida, Constança Entrudo, SUPERFICIAL., que têm uma filosofia e uma forma de pensar que eu vejo como visionária, e que lutam para mudar essas questões. Mas não vou dizer que é fácil, porque não é. Eu continuo batendo pé, todos os dias, em vários lugares enquanto modelo, para afirmar não só a minha “mulheridade”, mas o meu corpo trans, o meu corpo dissidente, que só por existir é um corpo político. E às vezes, a impressão que passa é que as pessoas parecem que preferem viver na ignorância, cometendo os mesmos erros que foram falados, muitas, muitas vezes, como tratar no masculino, chamar pelo nome morto, e às vezes você percebe que é propositado.
Eu acho que essa guerra está longe de acabar, mas enquanto tiver pulmões vou estar lutando. Porque não é só por mim, não é só pelo meu corpo, até porque eu me sinto privilegiada nesta situação. Muito até! É mais pelas outras que estão por vir. Porque eu sei que eu só estou onde eu estou, porque muitas morreram, entendeu? Eu quero abrir portas e espaços para que outras possam fazer aquilo que eu faço. Eu quero ser e fazer a diferença para a geração que está vindo.
PARQ: Estudaste teatro na Fábrica da Criatividade, em São Paulo, e levas já mais de 9 anos bailado clássico, tendo no teu currículo instituições como a Cia Paulista de Dança, a Escola de Teatro Bolshoi e a London Russian Ballet. Nas entrevistas referidas anteriormente, explicas que sofreste bastantes abusos de cariz transfóbico e, desde então, não voltaste a atuar para nenhuma companhia. Gostarias de voltar a dançar, caso houvesse uma melhoria no trato por parte das grandes instituições de teatro e dança para com corpos dissidentes?
Ivvi: Sim, eu adoraria voltar a dançar, porque afinal são 9 anos da minha vida dedicados a essa arte. Mas quando a gente pensa na base e na podridão que as artes clássicas podem trazer tem o desejo que num futuro muito próximo ações assassinas que presenciei não vão mais acontecer. O ballet clássico onde eu fui formada é uma arte binária e muito machista, uma vez que as mulheres inicialmente nem podiam dançar e quando se tornou possível, a saia tinha de cobrir o calcanhar. Então pensar num travesti enquanto primeira bailarina, por mais que seja uma grande vontade, que seja um grande sonho, torna-se impossível e não é a cor de pele, não é o género, não é a minha genitália que define a boa profissional que eu sou. Sinto que é realidade que está distante de acontecer. Eu nunca conheci nenhuma bailarina trans e enquanto bailarina já ouvi coisas do género: “não precisamos de duas princesas no palco”, agressões que por mais que nós pensemos que são esdrúxulas, elas ainda continuam acontecendo. E eu acho que ainda vai demorar um pouco para essa realidade melhorar, mas eu adorava voltar aos palcos, caso essa realidade mudasse.
PARQ: Estes eventos filantrópicos que criaste têm em vista não só a tua cirurgia de redesignação de sexo, mas também outras causas LGBTQIA+, podes explicar o porquê desta escolha?
Ivvi: Pode não ser para muita gente, mas para mim é óbvio que as oportunidades não são as mesmas, as dificuldades não são as mesmas, que o acesso a esse tipo de privilégio, infelizmente, ainda é muito distante. Quando eu falo de pessoas trans, de pessoas não brancas, de pessoas emigrantes, eu quero poder ter a possibilidade de fazer com que “as minhas” possam desfrutar desses lugares que são importantíssimos e necessários. Porque quando eu penso em comparação a essas dificuldades, quando eu acordo às 5 da manhã para pegar o transporte e ir para a escola, para universidade, o que seja, tem pessoas que acordam às 8 e a preocupação é se o suco é de laranja ou de maçã. E quando você fala de pessoas travesti-géneres, a realidade é outra. Eu falo por mim mesma, que tive o privilégio de estudar em instituições de grande renome e relevância cultural, e ser a única pessoa não branca na minha turma, ser a única pessoa trans, e a falta de espaço e representatividade é gigantesco!
O acesso é escasso, e eu acho que o cis-tema quer continuemos na ignorância, na marginalidade. E por isso, a luta é que as pessoas, no geral, comecem a enxergar que não é normal a ausência de certos corpos em certos lugares, quando no meu ponto de vista, isso deveria ser de acesso universal, independente se você é ele, ela, ou se você não é nada. Porque conhecimento e estudo, tem e deve ser um direito de todes.
PARQ: Em 2020 apresentaste a performance “Corpos” no Plantasia, em Lisboa. Queres explicar em que consistia esta performance?
Ivvi: Posso explicar, sim. “Corpos” surgiu logo depois de uma tentativa de suicídio, depois de estar passando por um processo de auto-aceitação e lutando pela aceitação enquanto pessoa trans. Então decidi pesquisar, estudar mais sobre a realidade travesti. Porque, como eu já disse, eu me sinto muito privilegiada por ser quem sou e por estar nos espaços em que estou. E aí eu achei um caso de um assassinato de uma travesti que foi encontrada num rio, desconfigurada, sem documentos de identificação, e com um saco amarrado na cabeça. Isso mexeu muito comigo. Em conversa com a minha mãe, que é uma pessoa muito religiosa, fazendo uma analogia do corpo, do meu corpo, dos corpos, não é? Santos, enquanto criação divina, me surgiu essa questão que é: eu fui criada em imagem e semelhança a Deus, logo, eu sou um corpo santo. E Deus, é amor, é respeito, é imensidão, e pensar que pessoas que se ajoelham todos os dias numa igreja, que para mim só fede a podre e a hipocrisia, dizendo que “em nome de Deus, Amém”, são as mesmas que matam, que dissipam o ódio, que pregam um Deus que é diferente de Deus que eu conheço. Então, eu escrevi esse projeto, uma vez que Portugal é um país super católico, super religioso, e é o país que me acolheu enquanto travesti, enquanto mulher trans. Fazendo uma crítica a esse religioso, foi botar o meu corpo nesse local de vulnerabilidade, de exposição, e fazer com que as pessoas vissem a minha realidade do outro lado da moeda. Foi uma crítica ao religioso-social, usando o meu corpo como artifício para isso. E foi muito interessante porque tiveram pessoas que realmente se envolveram e comoveram com a performance, pessoas com históricos muito religiosos e que conseguiram entender a mensagem que propus na peça. Tinha pessoas que nunca tinham ido à Igreja, nunca tinham comungado, e ali tiveram a primeira comunhão comigo, enquanto um corpo marginalizado, um corpo travesti, um corpo santo, que sangra, que chora, um corpo que grita pela vida, que grita por existir.
PARQ: Com este festival tu levantas também uma questão muito importante, que é a falta de acesso à saúde transsexual. Queres explorar esta ideia?
Ivvi: Sim! A saúde das pessoas trans ainda é uma coisa que tem de ser muito discutida, porque na maioria das vezes, e aqui falo por mim mesma, a sensação que se tem é que jogam a gente de um lado para o outro, e ninguém realmente dá a importância que deveria ser dada. O sistema público de saúde não funciona como deveria, e ninguém entende que a urgência que nós temos não é enquadrada no tempo dessas instituições. Eu não consigo dar início ao procedimento de hormonização e esperar quase 6 meses para uma primeira consulta. E mesmo assim, quando chega a consulta, ter que passar por situações que são humilhantes, que são muitas vezes desumanas, os profissionais de saúde não estão preparados para lidar com o nosso público. Eu não posso esperar anos para uma possível cirurgia, quando são-me colocadas muitas barreiras, a partir do momento que a patologização do meu corpo é feito por pessoas hetero-cis-normativas, que decidem o que eu posso ou não fazer com ele.
Eu, para conseguir fazer uma cirurgia, enquanto pessoa trans, preciso de laudos médicos que me coloquem numa posição de louca, na qual eu tenho um défice x, y, z, que vai sair enviado para a Ordem dos Médicos, para passar por uma aprovação, novamente por pessoas hetero-cis-normativas, para validar. Só nesse momento vai ser sim ou não. Enquanto que numa pessoa cis, se ela quiser ou não colocar um peito (silicone), o processo não é o mesmo, porque não conheço até hoje nenhuma mulher ou homem cis-géneros que tivessem que passar por exames psiquiátricos para fazer qualquer tipo de cirurgia estética. A necessidade de nos colocar num local constante como doentes, é cansativo e desgastante. Nem todas as pessoas têm o privilégio de pagar por uma instituição privada.
A cirurgia de redesignação genital custa 15 mil euros. Num país em que o salário mínimo é 700 e tal euros e onde a renda mínima é 350 euros (com sorte!) torna-se impossível fazer os acompanhamentos necessários no privado. As demandas são muitas: endocrinologia, psiquiatria, psicologia, são algumas das áreas em que pessoas trans têm de ser acompanhadas a todo o tempo. Agora, pensa na matemática: se eu recebo 700 e tal euros, pago 350 euros de renda, pago uma consulta que já me deixa 80 e tal euros, outra que me deixa 100 e tal euros, mais os remédios e hormonas, que são necessárias em muitos dos casos, os números não fecham. Comer também é uma necessidade, transportes são uma necessidade. A marginalização de corpos trans dentro de instituições médicas é imensa e não temos a atenção necessária. Não existe um tratamento específico para os corpos trans. Eu faço tratamento de reposição hormonal que é indicado para mulheres cis na menopausa, homens trans fazem tratamentos indicados para homens cis na andropausa, tenho amigas que tomam remédio para grávidas, para fazer com que os seios cresçam. Não existe uma linha de tratamento pensada e desenvolvida para corpos trans.
O Festival traz todos esses pontos, para tornar mais possíveis a existência desses corpos e chamar a atenção para o descuido e o descaso que nós passamos. Nós precisamos de profissionais direccionades e que saibam nos atender, precisamos de instituições que pensem na nossa existência como pessoa, não como estatística. E trazer esses pontos no festival não é andar em círculos, é andar em frente. É poder passar a mensagem para quem mais precisa, é poder tirar corpos da margem e trazer para o centro. Nós existimos e temos que ser vistas e ouvidas!
Texto por Sofia Seixo Garucho para PARQ_75.pdf (parqmag.com)
fotografia de Miguel Domingos
produção e styling Tiago Ferreira
makeup Verónica Zoio
Agradecimentos a O Studio Lisboa e Stivali Lisboa